Correio Braziliense
A crise só escalou no gogó do presidente
Lula; nos bastidores, o governo tenta abrir as negociações com Trump, por meio
do vice-presidente Geraldo Alckmin
Comecemos por Domingos Fernandes Calabar,
conhecido como grande "traidor da pátria", em contraponto aos heróis
da Batalha de Guararapes, contra os invasores holandeses, em Pernambuco, no
século XVII: André Vidal de Negreiros (militar paraibano), João Fernandes
Vieira (militar e senhor de engenho português), Henrique Dias (negro liberto) e
Filipe Camarão (índio potiguar). Eles lideraram a resistência aos holandeses e
são os heróis do mito fundador do Exército brasileiro.
Proprietário de terras alagoano, Calabar foi julgado pela historiografia como sendo um execrável traidor, que facilitou a instalação dos holandeses nas antigas capitanias de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Em 1635, porém, na região de Porto Calvo, acabou sendo capturado e condenado à morte por traição. No dia 22 de julho de 1635, foi enforcado; seus restos mortais, esquartejados e espalhados em praça pública.
Sua morte não impediu a ocupação do Nordeste
pelos holandeses de 1630 a 1654, cuja gestão colonial foi profundamente marcada
pela administração de Maurício de Nassau, militar alemão enviado pela Companhia
das Índias Ocidentais para governar a colônia holandesa. A forma como geriu os
negócios coloniais na região, visivelmente mais branda do que a portuguesa,
possibilitou a prosperidade material dos colonos. Durante o regime militar, no
musical "Calabar, Elogio da Traição", de Chico Buarque de Holanda, o
mito foi relativizado.
A História concede a seus personagens um
tratamento no qual não podem sair em defesa própria, pela inevitável barreira
espaço-temporal, mas que são revisitados pelos historiadores. Jair Bolsonaro e
seus filhos, o senador Flávio (PL-RJ) e o deputado Eduardo (PL-SP), não
deveriam subestimar a força do mito de Calabar no imaginário brasileiro. O clã
assumiu a responsabilidade pelo tarifaço de 50% contra as exportações
brasileiras, cuja entrada em vigor está prevista para 1º de Agosto.
Bolsonaro e seus filhos estão sendo acusado
de trair o povo brasileiro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Isso vai
ao encontro do patriotismo dos brasileiros, mas nem por isso simplifica as
coisas. A situação é dramática. O Brasil não tem poder de dissuasão para
enfrentar o presidente Donald Trump, cuja mão pesada se faz sentir em todo o
mundo. Tudo indica que somente negociará com o Brasil após o tarifaço entrar em
vigor.
Trump não dá sinais de que renunciará à
exigência de impunidade para Bolsonaro, seu aliado, em razão de um acordo com o
Brasil que satisfaça aos interesses econômicos dos Estados Unidos. Lula reage à
chantagem de forma firme, mas a fronteira entre a altivez e a soberba é muito
ténue, assim como entre o risco calculado e a irresponsabilidade. Vamos ter que
"aguentar o aguaceiro pelas ventas", como dizem os marujos
portugueses, e fundear com duas âncoras em meio à tempestade. Isso depende da
resiliência de nossas instituições.
Teoria do Louco
Para alguns analistas, Trump adotou a Teoria
do Louco, de Thomas Schelling, professor de Harvard, na qual a irracionalidade
aparente tem racionalidade e visa forçar o adversário a uma negociação pela
intimidação. A questão de fundo é o endividamento dos EUA, que ameaça sua
estabilidade fiscal e a dos parceiros comerciais. Sua dívida pública líquida
saltou de US$ 1,5 trilhão, em 2000, para US$ 26,5 trilhões, em 2024. A dívida
bruta atingiu US$ 37 trilhões (115% do PIB).
Pela lei orçamentária aprovada por Trump,
cortes de impostos para os mais ricos e aumento dos gastos militares devem
gerar um acréscimo de US$ 3,9 trilhões de deficit até 2034, mesmo com cortes em
saúde e educação. Esse gargalo fiscal explica em parte a postura agressiva da
Casa Branca no comércio internacional. Tarifas elevadas cumprem múltiplas
funções: recolher receitas, pressionar parceiros e alimentar o eleitorado
interno com gestos protecionistas. A Casa Branca quer transferir essa dívida
para os parceiros comerciais.
Coerente com a Teoria do Louco, Trump exerce
um poder performático e imprevisível para obter concessões. O tarifaço contra o
Brasil não tem justificativa econômica sólida. Nos tornamos um alvo simbólico e
ao seu alcance, para intimidar os demais países do Brics, a América Latina e o
Canadá. O Brasil tem a 10ª economia do mundo, mas não tem poupança interna nem
autossuficiência tecnológica, muito menos coesão política interna e poder de
dissuasão militar para suportar uma rutura com os EUA.
Ao contrário da China, que responde com
contramedidas imediatas, recorremos a notas técnicas e declarações retóricas. A
crise só escalou no gogó de Lula. Nos bastidores, o governo tenta abrir as
negociações com Trump, por meio do vice-presidente Geraldo Alckmin e dos
senadores que chegarão amanhã em Washington. No plano global, os credores
americanos — públicos e privados — observam com preocupação a explosão da
dívida. Nesse aspecto, as tarifas funcionam como válvula de escape: geram caixa
e projetam liderança no curto prazo.
Confirmada a imposição da tarifa de 50% ao
Brasil, é provável que haja exceções estratégicas para produtos cujo
encarecimento poderia afetar a inflação norte-americana, como alumínio e carne.
O Departamento de Comércio dos EUA declarou que Trump "continuará aberto à
negociação", ou seja, sugeriu que o tarifaço é antes um instrumento de
barganha do que uma política definitiva, até porque afeta as relações entre as
empresas norte-americanas e suas filiais no Brasil. A conferir.
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