O Globo
Avanço científico não significou
amadurecimento emocional. Pelo contrário, passa sensação de que estamos
regredindo
O homem mais rico do mundo, Elon Musk, entrou
em choque com o homem mais poderoso do mundo, Donald Trump.
Uma semana depois, fizeram as pazes. Mais que o conteúdo da divergência,
interessa perguntar que mundo é este, em que são simultaneamente o mais rico e
o mais poderoso.
É um mundo tecnológico e cientificamente sem paralelo na História da humanidade. Eles discordam do ritmo da conquista de Marte. Ambos dispõem de redes sociais próprias e nelas se comunicam com milhões com um movimento de dedos.
No entanto são dois egos inflados, prontos
para um embate juvenil porque se consideram grandes demais para o espaço que
ocupam. A noção das imensas responsabilidades pareceu desaparecer diante do
orgulho ferido.
O que isso diz sobre o mundo, se é que diz?
Parece que o imenso avanço científico não significou amadurecimento emocional.
Pelo contrário, passa uma sensação de que estamos regredindo.
Quando penso em imperadores como Adriano e
Marco Aurélio, estadistas como Churchill e De Gaulle, combatentes como Ho Chi
Minh e Nelson Mandela, sinto Trump como um milionário brincando de governar.
Ele constrói muros no lugar de pontes, reaviva prisões fora do país, como a de
Guantánamo, transforma países em presídio, como El Salvador, e
ressuscita a prisão de Alcatraz.
A campanha contra os imigrantes mostra algo
muito sério: Trump caminha para um roteiro autoritário, conhecido na História,
mas que representa um abalo na democracia americana.
Famílias são separadas pela polícia, pessoas
são detidas no caminho da igreja, um dançarino brasileiro com dez anos de
trabalho nos Estados Unidos perde
sua licença, estudantes são proibidos de entrar, países inteiros não têm mais
acesso a visto, cientistas deixam o país.
Tamanha insensatez só poderia provocar as
reações que começaram na Califórnia e tendem a se estender. Parece que Trump
esperava por isso para acionar tropas federais, passando por cima de
governadores.
Um das formas de explicar Trump é a análise
da conjuntura mundial, o exame do peso da imigração e o resultado das políticas
ocidentais, suscitando o avanço da extrema direita.
Mas, às vezes, suspeito que há algo
transcendendo às conjunturas, algo que é uma característica humana pronta a
renascer em cada momento histórico. Essa suspeita me leva aos livros de Primo
Levi, um escritor e cientista italiano que ficou preso em Auschwitz. Refletindo
sobre sua experiência no campo de extermínio, ele acha que a raiz do mal reside
numa assimetria inseparável da vida.
Da mesma forma, segundo ele, que a ciência
pode ser usada com fins destrutivos, a racionalidade humana contém o germe que
pode engendrar violência mortal. Auschwitz era a derrocada absoluta da razão,
ao mesmo tempo que havia uma metódica organização racional no funcionamento do
campo.
Neste momento, o homem mais poderoso do mundo
persegue imigrantes que foram, parcialmente, o dínamo da grandeza de seu país.
O homem mais rico do planeta comandou a política que retirou a ajuda americana
ao mundo, ameaçando a saúde e a segurança alimentar de milhares de crianças.
Enquanto Trump chamava o outro de louco, e
Musk insinuava que seu adversário é pedófilo, minha pegunta é bastante singela:
o que queremos dizer quando falamos em progresso?
Essa reflexão não pode negar as imensas
conquistas materiais e culturais dos Estados Unidos. Mas reacende a dúvida de
que algo estava contido em seu modo de vida que acabaria resultando nesses dois
personagens que ocupam o topo da pirâmide nacional.
Talvez a resposta seja mesmo a de Primo Levi:
uma assimetria inseparável da vida. Como detectá-la? Como combatê-la? Primo
Levi já morreu, e as perguntas seguem no ar.
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