O Globo
Seria impossível a Castello Branco emular
qualquer pensamento à luz da lógica reversa presente na oratória de Bolsonaro
Fico feliz de o general Augusto Heleno não ter presenteado Bolsonaro com “A máquina do golpe”, de Heloisa Starling. Nada garante que o enredo narrado pela historiadora fosse compreendido ou assimilado. Lá estão os passos dados pela oposição na criação de um clima propício à quartelada que resultou na ditadura militar.
Longe de imaginar que Bolsonaro não tenha
buscado semear ambiente indigesto, com a difamação do processo eleitoral e os
discursos vazados em paranoia premeditada, em especial na porta dos quartéis.
Bem que tentou. Assim como fracassou em deixar de ser oficial subalterno — não
passou nos exames de admissão — ou em ser paraquedista — ao saltar, chocou-se
contra um prédio e quebrou as duas pernas na queda —, buscou sem sucesso
intrigar os fardados contra a democracia. Ah, planejou também explodir
bombas-relógios nas unidades militares no Rio de Janeiro. Aí, no caso, de novo
faltou-lhe coragem.
Tivesse lido o livro, ou pedido um resumo ao
filho Jair Renan, Bolsonaro estaria informado de que, para ocorrer 1964, os
golpistas da sociedade civil e os militares precisaram de vários anos de
preparativos e palhaçadas da esquerda. Contaram ainda com a narrativa da Guerra
Fria e dos dólares aplicados pelo embaixador Lincoln Gordon na eleição de
deputados e senadores simpatizantes de um golpe. Se na época o poder estava
com João
Goulart, em 2022 o funesto era o capitão reformado, mostrando como decaíram
a educação e a geração de valor no Brasil.
Acusados de ser os autores intelectuais (!)
da tentativa de golpe de 2022, estão no banco dos réus os generais Braga
Netto, Paulo
Sérgio Nogueira e Augusto Heleno, além de Bolsonaro. Tendo como base
seus depoimentos ao Xandão, coalhados de muxoxos ou insinceros pedidos de
desculpa, é possível ver a diferença cognitiva em relação aos golpistas de
1964. Seria impossível ao marechal Castello Branco emular qualquer pensamento à
luz da lógica reversa presente na oratória de Bolsonaro. Ou a Golbery usar
justificativas semelhantes às lançadas por Braga Netto para negar suas
mensagens capturadas pela polícia. Uma exceção: a canhestra catatonia de Augusto
Heleno emparelha com a covardia de Costa e Silva.
Além da capacidade intelectual e operacional
dos personagens, outras diferenças são notadas entre 1964 e 2022. A postura dos
comandos militares, diante do julgamento de Bolsonaro e de seus generais de
pijama, exibe o aprendizado com o fracasso da experiência de 1964. Até então,
digamos desde o golpe contra a monarquia, seguia-se espécie de mandato divino
pelo qual fardados tinham onipotência sobre os civis. Como se apenas eles
fossem patriotas e soubessem a receita para superar nosso atávico subdesenvolvimento.
Era um vício da filosofia positivista de Augusto Comte, base do golpe de 1889,
distorcida por Benjamin Constant Botelho, um dos líderes da empreitada militar.
Em sua ânsia de elevar rapidamente o Brasil a estágio menos desigual e moderno,
também industrial, Constant Botelho chegou a propor algo como uma “ditadura
progressista”! Mesmo com a barafunda autoritária dos dois primeiros ditadores,
os marechais Deodoro e Floriano Peixoto, permaneceria entre os militares o
assombro de que carregavam o elixir da prosperidade. E de que seriam mais bem
aparelhados que qualquer mané eleito pelo povo (a má sorte trouxe-lhes o
capitão). As constantes quarteladas contra a democracia e a instalação do
regime de 1964 apenas reafirmaram o folclore de que o brasileiro não aprende
com os erros.
Sendo certa a condenação de Bolsonaro e
agregados, em julgamento dentro das quatro linhas, o Brasil parece assistir à
estreia de um novo filme: o respeito dos militares às regras democráticas e a
desistência de interferir no processo (mesmo que errático e desesperador pela
incompetência) conduzido pelos civis. Pode-se duvidar do comportamento nada
assertivo do general Freire Gomes, mas são os fatos, afinal, que contam: não
houve apoio em armas à proposta de golpe feita por Bolsonaro.
Os generais de 1964 desconfiavam da
capacidade civil de conduzir o país ao futuro desenhado pelo Hino Nacional. Ao
deixarem o poder em 1985, assim como João Figueiredo, saíram da História pela
porta dos fundos. O enredo de Bolsonaro, malfadado em seu capítulo final, exibe
um estágio diferente do pensamento militar brasileiro: os dólares de Lincoln
Gordon, o canto de civis golpistas e o positivismo ditatorial de Benjamin
Constant ficaram no passado. Ao menos até agora.
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