Correio Braziliense
A questão que se coloca é a de se saber se é
constitucional a concessão de anistia para os crimes de abolição violenta do
Estado Democrático de Direito e golpe de Estado
Em boa hora, o Supremo Tribunal Federal (STF)
reconheceu que os atos ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023 e mais aqueles
outros narrados com riqueza de detalhes na denúncia do procurador-geral da
República representaram uma tentativa de golpe de Estado. Não foram apenas
vidraças quebradas, plenários destruídos ou uma escultura manchada por uma
frase escrita com um batom. O próprio presidente eleito seria assassinado e um
ministro do STF foi vigiado com o mesmo objetivo, além disso, o que não é
pouco, o roteiro criminoso previa prisões de outras autoridades.
As instituições democráticas, no entanto,
resistiram e prevaleceram. Pessoas foram processadas, condenadas e presas.
Agora foi a vez do núcleo dirigente da trama golpista. As penas foram
elevadíssimas, e isso pode funcionar como combustível para o movimento por uma
anistia que, aliás, era anterior à própria condenação do ex-presidente, de
alguns de seus ministros e de outros altos dirigentes de órgãos do Estado.
Estabelecida essa premissa, a questão que se coloca é a de se saber se é constitucional a concessão de anistia para os crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.
Ingo Sarlet, respeitado constitucionalista
entrevistado pela Folha de São Paulo (edição de 12/9, página A15), observa que
"a Constituição traz uma vedação implícita a esse tipo de perdão" e
acrescenta que "causa até espécie que uma medida dessas possa vir de
dentro do Congresso, quando ele próprio é o pilar da democracia".
Podemos, particularmente, ter asco pela
concessão de anistia no caso do ex-presidente Bolsonaro et caterva, mas entre o
nosso sentimento pessoal e o que objetivamente diz a Constituição Federal
medeia um fosso.
Comecemos pela ideia de que não se pode
perdoar ou esquecer quem atenta contra os princípios do Estado Democrático de
Direito, pois haveria aí uma contradição. Ora, mas é justamente em levantes de
natureza política que a anistia tem lugar. Os vencidos, por piores que sejam
seus atos, podem ser anistiados, e mesmo em caso de tentativa de golpe de
Estado.
Elucidativa, no ponto, a matéria de Fabio
Victor trazida pela Folha na mesma edição da referida entrevista que aponta, ao
longo da nossa história, a ocorrência de "14 golpes e tentativas de golpe
no período republicano, incluindo a de Bolsonaro — todos liderados por
militares". A reportagem intitulada "Condenação de militares é um
marco, mas anistia repetiria o passado", com base no estudo apresentado
pelo historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
registra que em "seis das sete tentativas fracassadas (1904, 1922, 1924,
1956, 1959 e 1961), os golpistas foram anistiados por decretos presidenciais ou
legislativos".
Portanto, gostemos ou não, historicamente a
anistia tem lugar exatamente em atentados contra a própria democracia. O jogo
democrático conta com o instituto para restabelecer a convivência social e o
apaziguamento das diferentes forças políticas. Se isso ocorre, ou não, são
outros quinhentos, mas o fundamento é esse e tem natureza política.
Em segundo lugar, é preciso ter claro o
seguinte: uma coisa são as construções interpretativas feitas a partir da
leitura da Constituição e outra é o que ela diz. De verdade, o seu artigo 5º,
inciso XLIII, é claro ao dizer que são "inafiançáveis e insuscetíveis de
graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e
drogas afins, o terrorismo e os definidos como hediondos". Como se vê, os
crimes contra o próprio Estado Democrático não estão incluídos na vedação e por
uma razão simples: o Estado não pode prescindir desse instrumento para a harmonização
da sociedade.
É verdade, como afirma o jurista alemão Peter
Häberle, que "não há norma jurídica, senão norma jurídica
interpretada", mas essa atividade interpretativa não pode afrontar o
limite semântico do texto escrito e, menos ainda, criar restrições onde a
Constituição claramente não criou.
Dito de outra forma, em matéria de direitos
fundamentais e das prerrogativas dos Poderes da República, não se pode
restringir onde a Constituição não criou restrição por conta de uma construção
interpretativa que, inexoravelmente, traz os nossos valores e ideologia, mas
que podem não ser o que está na Constituição. O grande legado de Kelsen foi
exatamente o de separar o direito da política e, o quanto possível, da
ideologia.
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