O Estado de S. Paulo
Anistiá-los pode ser um incentivo a novas
barbaridades, talvez tão graves quanto ou piores do que a anterior
Monteiro Lobato teria provavelmente gostado e, talvez, sentido inveja. Mas seu conto Júri na Roça, de 1909, com a descrição de um sujeito encantado pelo espetáculo de um tribunal, foi tão bom, ou quase tão bom, quanto o início do julgamento dos envolvidos na bagunça de janeiro de 2023. Nenhum conto de Lobato, no entanto, consome tanto tempo quanto a fala mais longa daquele começo de trabalho no Supremo Tribunal Federal (STF). Além disso, nenhum conto chega a ser tão espantoso. Naquela notável série de depoimentos, chegou-se a pôr em dúvida a tentativa de golpe da extrema direita, embora tenha sido tão escancarada quanto o desfile de um bloco de carnaval. Mas esse fato, se alguma dúvida fosse defensável, seria de fácil verificação.
Há fotos e filmes para quem quiser conferir
cenas da baderna golpista, com faixas e cartazes pela derrubada do governo e
também pela entrega do Poder a militares ou a Jair Bolsonaro. Na prática, as
duas bandeiras levariam ao mesmo resultado, se os militares se dispusessem a
entrar no jogo, abandonando o legalismo seguido até ali. Desde o retorno à
democracia, comandantes fardados de maior nível têm recusado essas propostas,
como fizeram, de novo, recentemente. Mas as barreiras protetoras da ordem
democrática deveriam ser mais amplas.
Muito mais do que incômoda, a repetição de
tentativas golpistas é inquietante, embora as manobras antidemocráticas
continuem falhando. Não têm dado certo, mas parecem revelar uma democracia
ainda mal implantada nos costumes brasileiros e, portanto, menos segura que
aquela encontrada em sociedades mais avançadas. Em outras palavras, valores
democráticos parecem menos absorvidos do que aqueles de tipo religioso por uma
parte considerável da população brasileira.
Isso amplia e complica as tarefas de
governantes e de outros políticos comprometidos com a democracia. Além de
cuidar do desenvolvimento produtivo, da distribuição de oportunidades e da
atuação internacional do País, eles devem preocupar-se com a consolidação de um
ordenamento baseado na liberdade geral, na ampla participação dos cidadãos e na
ampliação das condições básicas de igualdade.
Não basta o desenho formal de uma ordem
democrática, quando as vantagens desse ordenamento permanecem abstratas para
uma ampla parcela da população. Também será insuficiente a distribuição mais
ampla e mais igualitária dos benefícios materiais e das oportunidades, se os
valores da liberdade forem pouco difundidos e pouco absorvidos por grande parte
da cidadania. Democracia se constrói também com educação e com difusão, no dia
a dia, dos valores da ordem caracterizada pela combinação de liberdade,
igualdade básica de condições e participação nas decisões de importância
coletiva. O melhor aprendizado decorre, provavelmente, da absorção da
experiência diária, mas o esforço educativo pode ser muito útil.
Mais do que um conjunto de regras, a efetiva
democracia é um sistema de crenças e de valores importantes para o dia a dia
dos indivíduos e de seus grupos. Esse conjunto pode variar internacionalmente e
até entre cidades, Estados e províncias. Pode, além disso, ampliar-se
historicamente, com a multiplicação das escolhas possíveis dentro do regime
legal. Isso tem ocorrido, por exemplo, com a inclusão do aborto entre as
decisões legalmente acessíveis. Mas certas condições básicas – como a
participação política e as liberdades de manifestação, de crença, de informação
e também de movimento – são essenciais para caracterizar a ordenação
democrática em qualquer parte do mundo.
Essas liberdades, sua negação e as condições
de sua preservação compuseram o grande tema dos trabalhos desenvolvidos nos
últimos dias, no STF. Disso se trata, afinal, quando se fala da ação golpista
de 8 de janeiro de 2023. Ao tentar impedir a instalação do novo governo, a
turba orientada pela extrema direita foi muito além da baderna, da invasão das
sedes dos Poderes e da depredação de prédios e de outros bens públicos.
Incitados e dirigidos por inimigos da democracia, os desordeiros tentaram
destruir o regime consagrado na Constituição e substituir um governo legítimo
por um poder ditatorial.
Nem todos, dirão alguns, tinham ideia clara
do significado e do alcance da ação golpista. Essa afirmação pode ser
verdadeira, mas é insuficiente para justificar o perdão aos envolvidos. Quem é
levado, por ignorância ou estupidez, a participar de uma ação obviamente
criminosa pode ser, com grande probabilidade, induzido a outra violação.
De toda forma, os golpistas ainda presos são
um grupo reduzido. Anistiá-los pode ser um incentivo a novas barbaridades,
talvez tão graves quanto ou piores do que a anterior. A vitória de um candidato
de direita na próxima eleição presidencial poderá resultar num esforço maior de
anistia a esses criminosos. Convém pensar seriamente sobre esse risco.
Há muito trabalho a ser feito, nos próximos anos,
a favor do fortalecimento econômico, da ampliação de oportunidades para milhões
de pessoas e da modernização do País. Não há por que atribuir prioridade a
golpistas condenados, mesmo sob o pretexto, obviamente falso, de pacificação.
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