Para escritor, a surra eleitoral de Michelle Bachelet em Evelyn Matthei foi plebiscito sobre o futuro do Chile e marcou o fim da sombra pinochetista
A surra que Michelle Bachelet deu em Evelyn Matthei no segundo turno das eleições presidenciais no Chile, domingo passado, foi motivo de grande alívio para o país e, evidentemente, também para mim. Os 25 pontos de vantagem de Bachelet sobre a adversária conservadora (62% para míseros 37%) não representam apenas um plebiscito sobre o rumo futuro que o Chile seguirá depois de quatro anos de governo direitista de Sebastián Piñera. É ao mesmo tempo uma maneira de fazer com que o Chile avance na difícil epopeia de enterrar o passado ditatorial.
A alegria que me proporciona a enorme humilhação sofrida por Evelyn Matthei tem raiz pessoal. Numa certa ocasião passei pela desagradável experiência de ver em ação, de perto, a candidata que acaba de ser derrotada. O encontro - se é que posso chamá-lo assim - aconteceu casualmente no dia 8 de outubro de 1999, em Londres. Um ano antes, os ingleses haviam posto na prisão o general Augusto Pinochet, por crimes contra a humanidade, e naquele dia se esperava que o juiz britânico Ronald Bartle decidisse se havia razões para extraditar o ex-ditador chileno para a Espanha. Como estava em Londres de passagem para assistir com minha mulher, Angélica, a um festival literário, decidi ir caminhando de manhã cedo até o Tribunal de Bow Street.
Fui recebido por um barulho ensurdecedor. Separados por um forte contingente policial, dois grupos de chilenos se enfrentavam com fúria. No lado mais numeroso, homens e mulheres que haviam sido torturados pela polícia secreta de Pinochet antes de serem expulsos do país queriam calar aos gritos o outro lado vociferante, que acabava de chegar de avião a Londres para dar apoio a seu herói preso. Segundo os boatos, as passagens desse grupo de Santiago para Londres e, evidentemente, a estadia, corriam por conta da Fundação Pinochet, organizadora dos "pinotours", como eram jocosamente chamados.
Imediatamente, das entranhas raivosas da multidão pinochetista surgiu uma figura que eu vira apenas em fotos e na televisão. Era Evelyn Matthei, na época senadora, recém-chegada de Santiago, famosa pela vulgaridade com que tratava os adversários. Mas nada me preparara para a cloaca de impropérios que brotaram de sua boca. Ela insultava os exilados com uma série de xingamentos chulos que, por discrição, prefiro não reproduzir, mas desmereciam a mãe ou a orientação sexual dos que, a poucos passos dela, clamavam por justiça.
A grosseria da senadora era ainda mais chocante por provir de uma mulher elegantemente vestida, cujas mãos levantadas como garras haviam tocado delicadamente piano, uma vocação que, para cúmulo da ironia, perseguira precisamente nessa mesma Londres, décadas antes. Mais inquietante foi a lenta percepção de que aqueles aos quais ela dirigia seu ataque verbal ouviam as mesmas palavras contundentes que haviam acompanhado a tortura sofrida nos porões da ditadura. A inflamada pinochetista reproduzia, suponho que inconscientemente, uma situação traumática, fazendo com que as vítimas voltassem ao momento de sua mais brutal humilhação.
Lembrando a vileza daquele momento 14 anos mais tarde, me dou conta de algo que, na ocasião nem eu nem ninguém poderia ter previsto: Michelle Bachelet ouvira uma enxurrada de ofensas semelhantes enquanto a ameaçavam e espancavam ao ser presa, com a mãe, Ángela Jería, em janeiro de 1975. Sua culpa foi ser um membro da família do general Alberto Bachelet, que aceitara um cargo ministerial no governo socialista e democrático de Salvador Allende. Quando Allende foi derrotado, no dia 11 de setembro de 1973, o general Bachelet foi preso como tantos outros, e pagou com a vida a lealdade à Constituição. Em março de 1974, morreu de enfarte em consequência das torturas sofridas.
Sinto-me intimamente satisfeito, portanto, pelo fato de Michelle Bachelet ter vencido precisamente a mulher que, em Londres, maltratou seus companheiros de infortúnio. A vitória torna-se ainda mais significativa quando examinamos a história pessoal das duas concorrentes. Ambas se conhecem desde pequenas, quando brincavam juntas num bairro de Antofagasta, onde seus pais, oficiais das Forças Armadas, estavam destacados. Muito se escreveu - eu, inclusive - sobre a circunstância extraordinária de que Fernando Matthei, pai de Evelyn, fosse o melhor amigo de Alberto Bachelet. E que, meses depois do golpe de Estado, Matthei fosse nomeado diretor da Academia da Força Aérea e, embora tendo escritório nas proximidades do porão onde maltratavam seu camarada de armas, não o visitasse nem levantasse a voz para ajudá-lo. Se o fizesse, não chegaria a ser ministro da Saúde de Pinochet nem, pouco depois, membro da junta militar por 13 anos.
Os filhos não são responsáveis pela covardia dos pais, nem tampouco por seus crimes. Mas vale ressaltar que Evelyn, enquanto os sicários de Pinochet chutavam e interrogavam sua companheira de infância, estudava economia na Universidade Católica do Chile, onde imperavam os Chicago boys, seguidores fanáticos de Milton Friedman, guru do extremo liberalismo dos mercados. Suas políticas neoliberais de capitalismo selvagem e repressão dos direitos dos trabalhadores converteram-se na ideologia dominante da ditadura - medidas cruéis que Evelyn Matthei continuaria defendendo como deputada e senadora, com a restauração da democracia, em 1990.
É difícil avaliar até que ponto influiu nos eleitores a genealogia que unia e dividia as duas candidatas, considerando que durante a recente campanha nenhuma delas se referiu a esse contrastante e coincidente passado. Ao contrário, enfatizou-se, e com razão, o futuro, debatendo qual das duas poderia resolver os urgentes problemas que afligem o país, sua vergonhosa desigualdade, seu sistema educacional degradado pela avareza, e a necessidade de mudar a Constituição autoritária, fraudulentamente instaurada por Pinochet em 1980 e ainda hoje carregada de resíduos indignos.
Os chilenos declararam, com toda a clareza, que aspiram a um país mais justo e digno. Mas é inevitável que a decisão da cidadania seja vista também, devido aos sobrenomes e às trajetórias das concorrentes, como um plebiscito sobre o sujo legado da ditadura. Os chilenos não desejaram ser governados pela mulher que fora a Londres para defender o tirano responsável pela morte de tantos compatriotas. Eles optaram, antes, por uma mulher que também foi vítima daquele terror e conseguiu sobrepor-se ao assassinato do pai, a seu passado e a suas tristezas para tornar-se símbolo de um Chile no qual ninguém será submetido a tais ultrajes.
A única coisa inquietante da disputa de 15 de dezembro foi a enorme abstenção, que chegou a inusitados 58% do eleitorado. Por que tantos cidadãos não se deram o trabalho de votar? Por apatia e comodidade? Pela certeza do triunfo de Bachelet? Ou porque sentem que os políticos e os partidos tradicionais não representam os interesses da maioria? Será que os jovens, os que mais se abstiveram, acreditam que a solução dos dilemas do Chile se encontra na crescente e maciça mobilização de vastos setores da sociedade, constantemente menosprezados pelos poderosos de um e de outro lado?
Conheceremos a resposta nos próximos anos. Enquanto isso, a simbólica surra levada por Evelyn Matthei é também, embora não o saibam ou não se importem, uma vitória para os que deixaram de votar. O país inteiro abriga hoje a esperança de que, por fim, teremos vencido, de uma vez por todas, a sombra ofensiva de uma ditadura que nos devora há mais de 40 anos.
Tradução de Anna Capovilla
Ariel Dorfman é um escritor chileno. Seu livro mais recente é Entre Sueños y Traidores: un striptease del exilio (Seix Barral)
Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás
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