Folha de S. Paulo
É como se ele proclamasse 'nenhum fato me vai
derrotar'
Ele teve opções, mas fatos não mudam 'cabeças
blindadas'
Acompanho a saga de Jair
Bolsonaro com fascínio quase filosófico: o que leva um homem a agir,
de forma tão consistente, contra seus próprios interesses?
A pergunta surgiu durante o seu governo,
continuou com sua reação à pandemia ,
aprofundou-se com a tentativa
de golpe —e encontra agora um desfecho teatral com a prisão preventiva
depois de tentar arrancar a tornozeleira eletrônica.
Por "curiosidade", justificou ele.
A vigília convocada pelo filho é apenas mais
uma prova de que genética não perdoa.
Alguns dirão que essa tendência antecede a
política e já vem dos quartéis —o que talvez autorize a piada "de soldado
a soldador" que anda circulando por aí.
Mas o assunto é sério: como explicar a
estupidez na política?
O tema raramente recebe a devida atenção. Hannah Arendt, em análise célebre, afirmou que Adolf Eichmann representava a "incapacidade de pensar" que define a "banalidade do mal". Eichmann seria estúpido —e sua estupidez foi instrumentalizada no Holocausto.
Erro evidente: Eichmann pensava, sim. Era um
nazista convicto, até "sofisticado" —digamos assim—, como se soube
mais tarde pelas gravações de áudio.
Sua maldade não era banal.
Robert Musil, outro autor de língua alemã,
tentou ir um pouco mais longe. Há dois tipos de estupidez, disse ele na
conferência de 1937. O primeiro é uma limitação intelectual natural, inocente,
sem maldade —o "bobo da aldeia", em sua versão literária clássica.
O segundo tipo é mais perigoso: o ato de
deformar o pensamento por orgulho, vaidade ou cegueira moral. O sujeito sabe
pensar, mas não quer pensar. Essa forma de estupidez não é cognitiva, mas
moral. É um vício de caráter.
Não creio que Bolsonaro se encaixe
perfeitamente em qualquer uma dessas categorias. A estupidez de suas ações não
nasce da inocência; mas a deformação deliberada do pensamento exige um tipo de
inteligência que ele também não possui.
O que há ali é aquela rigidez mental que a
historiadora Barbara Tuchman dissecou no clássico "A Marcha da
Insensatez", do original "The March of Folly". A própria palavra
"folly" já sugere essa rigidez, irmã gêmea da loucura.
Nas palavras de Tuchman, a história foi
pródiga em momentos de estupidez: eles surgem quando governantes seguem
políticas que, longe de beneficiá-los, aceleram sua própria ruína.
Curiosamente, Tuchman concorda com Carlo
Cipolla, para quem o sujeito estúpido é aquele que prejudica os outros e a si
próprio, sem obter benefício algum.
Mas há critérios para que a estupidez seja
propriamente política, avisa Tuchman. Primeiro, a conduta tem de ser
reconhecida como estúpida em seu próprio tempo, não apenas retrospectivamente.
Segundo, deve haver uma alternativa viável e
mais sensata —a estupidez só é estupidez quando age sem necessidade.
Por fim, o governante estúpido apresenta o
que Tuchman chama de "wooden-headedness" —algo como "cabeça
oca", que talvez traduzíssemos melhor como "cabeça blindada": o
governante estúpido só consegue interpretar a realidade a partir de noções
pré-concebidas e fixas, ignorando ou rejeitando qualquer evidência contrária. É
como se proclamasse, orgulhoso: "Nenhum fato me vai derrotar!".
Na obra de Tuchman, os exemplos de cabeças
blindadas se sucedem: os troianos com o cavalo de madeira; o comportamento de
Roma antes da revolta protestante; a obstinação de Jorge 3º ao tentar submeter
as colônias britânicas a impostos; e, já no século 20, a aventura suicida dos
submarinos alemães contra a Marinha americana ou o ataque japonês a Pearl
Harbor —dois atos que, ironicamente, trouxeram os Estados Unidos para
guerras que arrasaram seus autores.
Em todos esses casos, havia alertas; havia
alternativas; mas os fatos não demoveram as cabeças blindadas.
Guardadas as proporções de escala e
importância, a conduta de Bolsonaro é quase um manual de estupidez política.
Na pandemia, teria sido possível mais
competência e empatia —mas o homem "não era coveiro".
No golpe, havia sempre a opção de
simplesmente não o cogitar —e, quem sabe, aguardar na oposição outra eleição,
já que a derrota de 2022 foi por margem mínima. Mas isso implicaria admitir que
o PT venceu o pleito, uma heresia para os bolsonaristas.
E, na comédia da tornozeleira, a suposta
tentativa de fuga jamais compensaria o risco. Cumprir a pena —ou parte dela—
teria trazido mais vantagens que desvantagens; mas aprender com o caso de Lula
seria outra heresia.
Que os seguidores de Bolsonaro discordem
dessas premissas não surpreende. No fim das contas, eles seguem o
"mito" por alguma razão.

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