Folha de S. Paulo
Atordoante é vislumbrar legislação feita
por apedeutas, impermeáveis à compreensão da centralidade da educação no
presente e no futuro do país
Nas redes, uma cena penosa do que se pode
hoje chamar de miséria da cognição: a tentativa de diálogo entre um sênior
professor de direito e uma jovem deputada na Câmara Federal. Ele procura explicar que toda compreensão
implica um recorte da realidade, mas aferrar-se ao recorte com uma visão
particular de mundo torna impossível o conhecimento. Ela reage, dizendo-se
ofendida por ter ele ousado afrontar o plenário com "conceitos
acadêmicos".
O incidente pode soar irrisório, mas é um caso sintomático do que Gramsci chama de "molecular", isto é, o processo reflexivo sobre formação da subjetividade, em que se declina o problema político da compreensão crítica de si mesmo, e não apenas do social. Implica pesquisar mudanças psíquicas: "as pessoas de antes não são mais as pessoas de depois", diz o pensador. Molecular, e não macrossocial com suas grandes categorias, é a base conceitual para se entender processos afetivos e protofascistas atuantes na quebra de contenções psíquicas, morais e cognitivas inerentes ao modo civilizatório.
Objetivamente, há uma realidade fantasmática,
que se teme. Serve de pretexto para afecções misóginas, racistas e
ignorantistas latentes na consciência reacionária. Azeitadas pelo ódio, elas
emergem de supetão, como um clique no teclado. Uma dama descobre-se
político-anarquista e, enrolada na bandeira, ajuda a depredar símbolos da
República. Assombrado por fantasmas comunistas, um empresário financia atos
antidemocráticos. Sem pestanejar, uma família inteira avança contra um ministro do Supremo e
sua família no exterior, agredindo. É variada a cartografia da disrupção.
O singular do incidente na Câmara é que, na
visão da parlamentar, conceito acadêmico seja o mesmo que ofensa. O tom
didático do interlocutor despertou outro aspecto do fenômeno reacionário:
aversão ao discurso docente. Provém dessa estrutura emocional a crença errônea
de que só ensina quem não sabe fazer. Houve governante pós-ditadura,
culto, com horror visceral ao magistério, que estendia aos médicos.
Isso é miséria da cognição, outra face da
indigência afetiva, um retardo no processo de conhecimento, que inicialmente é
mero anti-intelectualismo, mas logo transformado em rancor dirigido à educação criativa: Paulo Freire simboliza
o inimigo. Pedagogo ideal seria o adestrador cívico-militar: nostalgia da
disciplina nazifascista e perspectiva de treinamento de robôs. Sem freios,
aparece o recalcado assim como a dificuldade de entender e de falar com padrões
mínimos de razoabilidade. Agora, em face do desestímulo crescente da vocação
docente, atordoante é vislumbrar uma legislação feita por apedeutas,
impermeáveis à compreensão da centralidade da educação no presente e no futuro
do país.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
Um comentário:
Um pouco complicado,como sempre,mas muito bom o artigo,acabei criticando justamente o que o artigo critica,rs.
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