domingo, 20 de julho de 2025

Moraes x Trump: terceirização de um duelo ou inversão de papéis? - Paulo Fábio Dantas Neto*

Riscos de otimismo desejoso são habituais a uma coluna que pretende comentar política, colada na conjuntura. Corri esse risco na semana passada, ao desenvolver e colocar no título do artigo, sem ressalvas suficientes, a interpretação do tarifaço ameaçado pelo presidente norte-americano contra a economia brasileira como uma segunda chance para o governo Lula acertar seu passo. Seguiu-se, entretanto, uma escalada de confrontos verbais e de mútuas medidas práticas de acirramento político. Aglutinação política de forças nacionais heterogêneas e negociação comercial no âmbito da diplomacia são as condições necessárias, vê-se que ainda ausentes, para que o título da coluna expresse realismo.

 A aglutinação chegou a se ensaiar até o início da semana, por uma articulação entre governo e setores do empresariado, com destaque ao agronegócio, e por uma manifestação de acatamento, por parte da cúpula do Poder Legislativo, do comando do Executivo nas operações de defesa econômica do país. Em ambas as situações, a interlocução pelo governo coube ao vice-presidente Geraldo Alckmin, que parecia investido, ao mesmo tempo, em missão administrativa obrigatória do ministério que comanda e na missão política de expressar a posição do governo de enfrentar a situação com firmeza para rejeitar interferência externa na atuação dos poderes da república e flexibilidade para agir pragmaticamente no campo comercial, pela consciência de riscos inerentes a um confronto nessa seara. Nesse aparente duplo sentido, o vice-presidente chegou a fazer veicular uma carta que seria a resposta do governo à insólita carta de Trump de uma semana antes. Não faltaram aplausos ao tom da resposta, nos meios de comunicação. Jornais cujas posições são vistas como críticas ao governo não negaram apoio, inclusive editorial, e não pouparam de críticas setores e lideranças de oposição que apoiaram ou tergiversaram na rejeição à posição de Trump. Cresceu na sociedade solidariedade a um governo até então detentor de níveis precários de aprovação. Esse sentimento afetou o eleitorado, como pesquisas de percepção captaram. Mas o real sentido político dos movimentos de Alckmin, para cada vez maior número de analistas, parece ser o governo e o governador de São Paulo. Na trilha nacional anda outra carruagem.

Ainda na terça-feira vieram os primeiros sinais de que o processo de aglutinação nacional empacaria. A reunião de representantes do governo e do Congresso com o ministro Alexandre de Moraes, em torno do impasse do IOF, terminou sem horizonte de acordo. Como aventado nesta coluna, pareceu faltar a Alcolumbre e Hugo Mota respaldo bastante nas duas casas legislativas para um recuo que a situação objetiva de vantagem do Executivo - criada pelo tarifaço e por reações destrambelhadas de oposicionistas - indicava caber ao Congresso. Sem poderem fazer um recuo que sugerisse também alguma concessão relevante do outro lado, deixaram a decisão com o STF. Deu o esperado: a posição do governo foi legitimada por Moraes, renovando, no Legislativo, a disposição de retaliação que setores mais radicais da oposição desejavam firmar, com sua resistência obstinada à objetividade dos fatos.

No dia seguinte, os discursos e as votações em plenário deixaram clara a contrariedade com aquilo que a oposição considera aliança política entre governo e STF.  Mas não apenas isso. Mantiveram o ambiente político suficientemente envenenado para, naquele mesmo momento, o bloqueio à continuidade da aglutinação ensaiada pelas incursões bem acolhidas de Alckmin tornar-se mais efetivo em cenas pessoalmente protagonizadas pelo presidente Lula. O que o presidente disse de principal na quarta-feira, em entrevista à CNN internacional, não merece reparo, já que declarou explicitamente os mesmos dois pontos (firmeza na defesa da soberania e disposição para negociar tarifas) que haviam sido salientados na carta do governo, divulgada por Alckmin. Mas é nos detalhes que o diabo se locupleta. Ali houve um dito desnecessário que levou a um não dito que seria importante dizer. A frase de efeito de que Trump não foi eleito imperador do mundo traduz uma verdade que não seria dita por um político realmente interessado num entendimento imediato. Ao ser proferida, revelou uma pretensão de colocar o suposto interlocutor num lugar espúrio, impedindo que a entrevista comunicasse um reconhecimento de legitimidade a um personagem que até as pedras sabem que não é dado a engolir desaforos.

No plano da política interna o presidente foi um pouco mais além. Num pronunciamento em cadeia pelos meios de comunicação fez, mais do que um chamado, propaganda de uma mobilização nacional em defesa da soberania, como se ela estivesse em curso como obrigação cívica, passível de ser cobrada independentemente da condução política que lhe for imprimida. A fala tratou como coisas indistintas a defesa dos interesses do país e defesa do governo, elencando algumas realizações. Complementou essa postura lançando vago e geral anátema de traidores da pátria a políticos de oposição, que não nomeou.

O protagonismo de Trump no acirramento do clima foi garantido pela carta de solidariedade dirigida a Bolsonaro, radicalizando os termos da carta anterior e, dessa vez, disparando contra o Brasil a acusação de sediar um “regime de censura”. Se a carta com as costumeiras digitais de Trump compôs, com a entrevista externa e a fala interna de Lula, um quadro de atiçamento do confronto, ainda assim ela mantinha Bolsonaro na posição de protagonista do duelo político interno. Ele não se fez de rogado e deu declarações públicas provocadoras, beirando o deboche, ao sugerir ao STF a liberação do seu passaporte para que fosse aos EUA resolver pessoalmente com Trump o problema das tarifas.

No dia seguinte, o país amanheceu sabendo de uma operação policial, pedida pelo MPF e autorizada por Moraes, na casa de Jair Bolsonaro, incluindo aplicação de tornozeleira eletrônica no ex-presidente e uma série de proibições à sua circulação física e digital. A justificativa de indícios de fuga é crível diante dos antecedentes do réu, mas nem por isso a operação, naquele momento, deixou de adicionar um ingrediente altamente explosivo numa situação já incandescente. Ninguém tem direito à ingenuidade de imaginar que cada lance desse script de mútuo endurecimento é mera coincidência; que Lula, ao falar na véspera, estava distraído quanto ao agravamento da situação judicial de Bolsonaro; que a operação ordenada na manhã seguinte às falas do presidente e do ex poderia ter ocorrido antes ou depois; ou que Trump estivesse atirando a esmo, desinformado sobre a precipitação dos acontecimentos, quando deu a Bolsonaro a carta de que precisava para falar da hipótese de viajar em contexto distinto do de uma fuga.

Fato é que, a partir da sexta-feira, com as medidas concretas de revogação de visto e outras sanções a Moraes e a indeterminados aliados seus no STF, tomadas pelo secretário de estado Marco Rubio, o processo saiu da raia protagonizada pelos dois políticos rivais - parte do embate pré-eleitoral entre governo e oposição com ingerência do presidente dos EUA - para ingressar no perigoso e imprevisível terreno do confronto político direto entre o governo daquele país e o Judiciário brasileiro. Confronto cujas dimensões institucionais não impedem que seja encarnado por atores espaçosos. Trump e Moraes falam e agem matando bolas no peito como protagonistas de um duelo mais mortal que o anterior.

Se Trump não estiver blefando, a situação objetiva ameaça mais do que o processo político brasileiro. Põe sob xeque prático as instituições políticas e também as relações comerciais e diplomáticas. É inimaginável um cenário mais desafiador do otimismo do título do artigo da coluna da semana passada.
Como tenho aversão e escrúpulos em escrever difundindo mensagens de amargura e desprovidas de esperança, paro por aqui nas especulações sobre desdobramento factual dessa conjuntura. Aguardemos.

Mas é pertinente discutir questões de fundo que essa conjuntura suscita. Como fez hoje, dentre outros, o cientista político Pablo Ortellado, em seu artigo hoje (“O STF político por inteiro” – O Globo, 19.07.25).

***

Se o raciocínio do título e do texto de Ortellado não tiver intenção crítica e até sarcástica para com a atuação do ministro Moraes, a aparência é de que o autor jogou a toalha quanto a esperanças de que a política encontre saídas para impasses políticos atuais. Se assim for, o autor não estará só, a julgar pelo fato de diversas análises convergirem para um diagnóstico de impotência da representação política, se ela não se fizer acompanhar de outras dinâmicas mais capazes de ampliação social do sistema político.

Por essa interpretação, Ortellado estaria, possivelmente, próximo a admitir a legitimação intelectual da ideia de “contrademocracia" como uma realidade sociológica e um complemento normativo necessário às democracias representativas, para deter o que seria seu atual processo de deslegitimação política. Essa ideia foi teoricamente desenvolvida em 2006, num livro recentemente publicado no Brasil (“A contrademocracia: a política na era da desconfiança”, Atelier de Humanidades, 2022), primeiro de quatro livros que o historiador e sociólogo francês Pierre Rosanvallon dedicou a mutações democráticas atuais. Pode ser vista, com alguma reserva, como justificativa sociológica para um acréscimo ao poder contramajoritário que classicamente é atribuído ao Judiciário em constituições como a nossa. No caso, instituições amparadas na contrademocracia serviriam também à demanda simetricamente oposta de reforço pós-liberal à soberania de uma maioria democrática antes que uma maioria eleitoral possa, eventualmente, desestabilizá-la. O ativismo Judiciário poderia, teoricamente, cumprir papel que ideias de democracia direta, ou "participativa" não conseguiram justificar, nem tornar realidade empírica. 

Sem autorização certa do próprio Rosanvallon, a ideia de protagonismo de atores e instituições de contrademocracia vem tendo crescente aceitação por parte de uma esquerda acadêmica desencantada com a política. Parece vingança tardia (e "bem compreendida") da noção de vontade geral de Rousseau contra, simultaneamente, diversas outras, de pensadores liberais consagrados como Tocqueville, Stuart Mill, Robert Dahl e a tradição liberal-conservadora da chamada “liberdade inglesa”. A contrademocracia comporia, ao lado das instituições da representação política por ela interpeladas, uma espécie de democracia mais "horizontal", que não prescinde, paradoxalmente, de uma esfera pública robusta, como aquela que simbolicamente pode ser afirmada por um personagem como o ministro Alexandre de Moraes. Essa esfera pública robusta, fiadora da autoridade democrática, pode ser vista como um tanto quanto despótica, da perspectiva do liberalismo político. 

Talvez não seja essa a perspectiva de Ortellado, que não pode ser deduzida arbitrariamente do seu artigo. Por isso é preciso deixar de pé a hipótese de que ele faz uma crítica usando o sarcasmo como estratégia argumentativa. Mas seguindo ainda a sugestão de que o STF, de um modo geral e o ministro Moraes, em particular, estariam agindo como institucionalizadores de contrademocracia, cabe seguir tentando entender do que se trata, para além de duelos políticos conjunturais.

Partindo anteriormente de perspectiva distinta de Rosanvallon, o cientista político estadunidense Robert Dahl falava, em sua teoria da poliarquia, atualizada em finais do século passado (“A democracia e seus críticos”, de 1989, publicado pela Martins Fontes, em 2012), de "quase-guardiania", como instituições a princípio não democráticas, para ele aceitáveis e necessárias para proteger minorias de impulsos despóticos de governos assentados em maioria eleitoral, desde que dentro de limites que não anulem a primazia do princípio da maioria. O último caso caracterizaria uma guardiania, incompatível com uma poliarquia. É possível interpretar o sentido de poderes do STF como “quase-guardiania”.

Pelo que posso entender de Rosanvallon, a ideia de Dahl não satisfaz porque não acolhe componentes antissistêmicos de sentimentos públicos rebeldes hoje relevantes nas democracias. Atitudes igualmente rebeldes como vigilância civil ativa de mandatos e governos representativos; impedimento de decisões políticas por movimentos contestatórios e demandas de penalização de atores políticos pelo Judiciário tornam politicamente delicada a busca de legitimação e institucionalização de sentimentos e atitudes rebeldes. Como reconhece o próprio Rosanvallon, a radicalização desses impulsos pode disseminar e legitimar, de roldão, concepções e práticas de uma “política pura do impolítico”.  Aí estaria uma linha tênue a separar os populismos de extrema-direita das várias interpelações, mais ou menos populistas, de vertentes progressistas e de esquerda. Estariam, uns e outros, distanciados da perspectiva da democracia representativa liberal. Esta, por sua vez, segue procurando enfrentar, com suas regras e valores, esses sentimentos tendentes a enfraquecê-la.

Um enfraquecimento por infecção é, obviamente, a implantação de regimes iliberais, como se fez na Hungria, tenta-se fazer nos EUA e presumivelmente seria feito no Brasil se Bolsonaro pudesse voltar. Nesse "se" diferencial reside a legitimação de Moraes como encarnação de um bem que refrata um mal.

Mas não se pode deixar de interpelar o equilibrismo dessa sociologia histórico-política, pensando que pode haver também fagocitação, por distintos atores da democracia representativa, em aliança tácita, não por conspiração, embora acertos entre eles possam ocorrer. Tal processo permitiria:  A) constranger mandatos eletivos em prol de imperativos sociais; B) tornar eficaz a contestação pública do sistema por movimentos de ação direta; C) judicializar radicalmente a política, com hipertrofia de poderes judiciais.

Estaremos vendo fantasmas se virmos no Brasil de hoje, ao menos uma confluência de "A" e um quase "C"?  Se sentimentos contestatórios de alta intensidade ganharem as ruas também, então poderemos ter a aliança completa para uma fagocitação da democracia representativa. Como se desmemoriados do que se passou no Brasil há menos de uma década, estamos costeando o alambrado de um novo exercício de exorcismo dos demônios da política. Até aqui, o que tem salvo a política representativa desse novo abalo desconstrutor é sua aliança tácita com o ceticismo popular, recentemente ampliado. Mas até quando?

Se não surgir algum tipo de laço carismático para tornar mais sólida essa aliança entre políticos e eleitores não alistados na guerra em curso, poderemos ter, em 2026, na melhor das hipóteses (a pior, não se pode nem imaginar), a prorrogação do ponto morto em que nos encontramos. Ponto morto e pantanoso, disfarçado pela pirotecnia de embates entre fabulações polares e tortas sobre o Brasil real.

Apesar de presságios de amargura, posições moderadas do centro à centro-direita seguem interessadamente condescendentes com a falta de acuidade estratégica da oposição, crendo piamente que ela será capaz, em suas mesquinharias, de se unificar nas eleições, fora da sombra extremista de Bolsonaro e da sua ampla reputação de golpista da democracia, agora reforçada pela condição de conspirador contra a soberania do país.    Condescendência análoga grassa do centro à centro-esquerda, onde se parece crer que a perspectiva de uma renovação "biológica" em 2030 justifica atrelamento acrítico e paralítico a uma estratégia de facção que não distingue minimamente obrigações de governo de propósitos de reeleição do seu chefe ou da eleição de quem ele ungir com seus santos óleos.

A situação é ainda mais perigosa que a indicada por essas mornas omissões interessadas de moderados dos dois campos.  Os carismas cadentes de Lula e Bolsonaro parecem terceirizar seu duelo para mantê-lo vivo. Apelam, respectivamente, a Moraes e a Trump. O que esperar daí? Que esses supostos terceiros se comportem razoavelmente e sirvam apenas de biombos a protagonistas políticos declinantes? Ou seus desempenhos podem levar a uma inversão de papéis entre protagonistas e coadjuvantes? É assustador assistir a simultâneos flertes dos polos de nossa elite política com o sacrifício da soberania nacional de um lado, e com a tutela judicial da democracia política, de outro. Noves fora Dahl e Rosanvallon, não haverá teoria que nos imunize contra efeitos dessa indigência política prática.

*Cientista político e professor da UFBA

Nenhum comentário: