A aglutinação chegou a se ensaiar até o início
da semana, por uma articulação entre governo e setores do empresariado, com
destaque ao agronegócio, e por uma manifestação de acatamento, por parte da
cúpula do Poder Legislativo, do comando do Executivo nas operações de defesa
econômica do país. Em ambas as situações, a interlocução pelo governo coube ao
vice-presidente Geraldo Alckmin, que parecia investido, ao mesmo tempo, em
missão administrativa obrigatória do ministério que comanda e na missão
política de expressar a posição do governo de enfrentar a situação com firmeza
para rejeitar interferência externa na atuação dos poderes da república e
flexibilidade para agir pragmaticamente no campo comercial, pela consciência de
riscos inerentes a um confronto nessa seara. Nesse aparente duplo sentido, o
vice-presidente chegou a fazer veicular uma carta que seria a resposta do
governo à insólita carta de Trump de uma semana antes. Não faltaram aplausos ao
tom da resposta, nos meios de comunicação. Jornais cujas posições são vistas
como críticas ao governo não negaram apoio, inclusive editorial, e não pouparam
de críticas setores e lideranças de oposição que apoiaram ou tergiversaram na
rejeição à posição de Trump. Cresceu na sociedade solidariedade a um governo
até então detentor de níveis precários de aprovação. Esse sentimento afetou o
eleitorado, como pesquisas de percepção captaram. Mas o real sentido político
dos movimentos de Alckmin, para cada vez maior número de analistas, parece ser
o governo e o governador de São Paulo. Na trilha nacional anda outra carruagem.
Ainda na
terça-feira vieram os primeiros sinais de que o processo de aglutinação nacional
empacaria. A reunião de representantes do governo e do Congresso com o ministro
Alexandre de Moraes, em torno do impasse do IOF, terminou sem horizonte de
acordo. Como aventado nesta coluna, pareceu faltar a Alcolumbre e Hugo Mota
respaldo bastante nas duas casas legislativas para um recuo que a situação
objetiva de vantagem do Executivo - criada pelo tarifaço e por reações
destrambelhadas de oposicionistas - indicava caber ao Congresso. Sem poderem
fazer um recuo que sugerisse também alguma concessão relevante do outro lado,
deixaram a decisão com o STF. Deu o esperado: a posição do governo foi
legitimada por Moraes, renovando, no Legislativo, a disposição de retaliação que
setores mais radicais da oposição desejavam firmar, com sua resistência obstinada
à objetividade dos fatos.
No dia seguinte,
os discursos e as votações em plenário deixaram clara a contrariedade com aquilo
que a oposição considera aliança política entre governo e STF. Mas não apenas isso. Mantiveram o ambiente
político suficientemente envenenado para, naquele mesmo momento, o bloqueio à
continuidade da aglutinação ensaiada pelas incursões bem acolhidas de Alckmin
tornar-se mais efetivo em cenas pessoalmente protagonizadas pelo presidente
Lula. O que o presidente disse de principal na quarta-feira, em entrevista à
CNN internacional, não merece reparo, já que declarou explicitamente os mesmos
dois pontos (firmeza na defesa da soberania e disposição para negociar tarifas)
que haviam sido salientados na carta do governo, divulgada por Alckmin. Mas é
nos detalhes que o diabo se locupleta. Ali houve um dito desnecessário que levou
a um não dito que seria importante dizer. A frase de efeito de que Trump não
foi eleito imperador do mundo traduz uma verdade que não seria dita por um
político realmente interessado num entendimento imediato. Ao ser proferida, revelou
uma pretensão de colocar o suposto interlocutor num lugar espúrio, impedindo
que a entrevista comunicasse um reconhecimento de legitimidade a um personagem que
até as pedras sabem que não é dado a engolir desaforos.
No plano da
política interna o presidente foi um pouco mais além. Num pronunciamento em
cadeia pelos meios de comunicação fez, mais do que um chamado, propaganda de
uma mobilização nacional em defesa da soberania, como se ela estivesse em curso
como obrigação cívica, passível de ser cobrada independentemente da condução
política que lhe for imprimida. A fala tratou como coisas indistintas a defesa
dos interesses do país e defesa do governo, elencando algumas realizações. Complementou
essa postura lançando vago e geral anátema de traidores da pátria a políticos
de oposição, que não nomeou.
O protagonismo
de Trump no acirramento do clima foi garantido pela carta de solidariedade
dirigida a Bolsonaro, radicalizando os termos da carta anterior e, dessa vez,
disparando contra o Brasil a acusação de sediar um “regime de censura”. Se a
carta com as costumeiras digitais de Trump compôs, com a entrevista externa e a
fala interna de Lula, um quadro de atiçamento do confronto, ainda assim ela
mantinha Bolsonaro na posição de protagonista do duelo político interno. Ele
não se fez de rogado e deu declarações públicas provocadoras, beirando o
deboche, ao sugerir ao STF a liberação do seu passaporte para que fosse aos EUA
resolver pessoalmente com Trump o problema das tarifas.
No dia seguinte,
o país amanheceu sabendo de uma operação policial, pedida pelo MPF e autorizada
por Moraes, na casa de Jair Bolsonaro, incluindo aplicação de tornozeleira
eletrônica no ex-presidente e uma série de proibições à sua circulação física e
digital. A justificativa de indícios de fuga é crível diante dos antecedentes
do réu, mas nem por isso a operação, naquele momento, deixou de adicionar um
ingrediente altamente explosivo numa situação já incandescente. Ninguém tem
direito à ingenuidade de imaginar que cada lance desse script de mútuo
endurecimento é mera coincidência; que Lula, ao falar na véspera, estava distraído
quanto ao agravamento da situação judicial de Bolsonaro; que a operação
ordenada na manhã seguinte às falas do presidente e do ex poderia ter ocorrido antes
ou depois; ou que Trump estivesse atirando a esmo, desinformado sobre a
precipitação dos acontecimentos, quando deu a Bolsonaro a carta de que
precisava para falar da hipótese de viajar em contexto distinto do de uma fuga.
Fato é que, a
partir da sexta-feira, com as medidas concretas de revogação de visto e outras
sanções a Moraes e a indeterminados aliados seus no STF, tomadas pelo secretário
de estado Marco Rubio, o processo saiu da raia protagonizada pelos dois
políticos rivais - parte do embate pré-eleitoral entre governo e oposição com
ingerência do presidente dos EUA - para ingressar no perigoso e imprevisível
terreno do confronto político direto entre o governo daquele país e o Judiciário
brasileiro. Confronto cujas dimensões institucionais não impedem que seja encarnado
por atores espaçosos. Trump e Moraes falam e agem matando bolas no peito como
protagonistas de um duelo mais mortal que o anterior.
Se Trump não
estiver blefando, a situação objetiva ameaça mais do que o processo político
brasileiro. Põe sob xeque prático as instituições políticas e também as
relações comerciais e diplomáticas. É inimaginável um cenário mais desafiador
do otimismo do título do artigo da coluna da semana passada.
Como tenho aversão e escrúpulos em escrever difundindo mensagens de amargura e
desprovidas de esperança, paro por aqui nas especulações sobre desdobramento
factual dessa conjuntura. Aguardemos.
Mas é pertinente
discutir questões de fundo que essa conjuntura suscita. Como fez hoje, dentre
outros, o cientista político Pablo Ortellado, em seu artigo hoje (“O STF
político por inteiro” – O Globo, 19.07.25).
***
Se o raciocínio do
título e do texto de Ortellado não tiver intenção crítica e até sarcástica para
com a atuação do ministro Moraes, a aparência é de que o autor jogou a toalha
quanto a esperanças de que a política encontre saídas para impasses políticos atuais.
Se assim for, o autor não estará só, a julgar pelo fato de diversas análises
convergirem para um diagnóstico de impotência da representação política, se ela
não se fizer acompanhar de outras dinâmicas mais capazes de ampliação social do
sistema político.
Por essa
interpretação, Ortellado estaria, possivelmente, próximo a admitir a legitimação
intelectual da ideia de “contrademocracia" como uma realidade sociológica
e um complemento normativo necessário às democracias representativas, para
deter o que seria seu atual processo de deslegitimação política. Essa ideia foi
teoricamente desenvolvida em 2006, num livro recentemente publicado no Brasil
(“A contrademocracia: a política na era da desconfiança”, Atelier de
Humanidades, 2022), primeiro de quatro livros que o historiador e sociólogo
francês Pierre Rosanvallon dedicou a mutações democráticas atuais. Pode ser
vista, com alguma reserva, como justificativa sociológica para um acréscimo ao
poder contramajoritário que classicamente é atribuído ao Judiciário em
constituições como a nossa. No caso, instituições amparadas na contrademocracia
serviriam também à demanda simetricamente oposta de reforço pós-liberal à soberania
de uma maioria democrática antes que uma maioria eleitoral possa, eventualmente,
desestabilizá-la. O ativismo Judiciário poderia, teoricamente, cumprir papel que
ideias de democracia direta, ou "participativa" não conseguiram
justificar, nem tornar realidade empírica.
Sem autorização certa
do próprio Rosanvallon, a ideia de protagonismo de atores e instituições de
contrademocracia vem tendo crescente aceitação por parte de uma esquerda
acadêmica desencantada com a política. Parece vingança tardia (e "bem
compreendida") da noção de vontade geral de Rousseau contra,
simultaneamente, diversas outras, de pensadores liberais consagrados como Tocqueville,
Stuart Mill, Robert Dahl e a tradição liberal-conservadora da chamada “liberdade
inglesa”. A contrademocracia comporia, ao lado das instituições da
representação política por ela interpeladas, uma espécie de democracia mais
"horizontal", que não prescinde, paradoxalmente, de uma esfera
pública robusta, como aquela que simbolicamente pode ser afirmada por um
personagem como o ministro Alexandre de Moraes. Essa esfera pública robusta,
fiadora da autoridade democrática, pode ser vista como um tanto quanto
despótica, da perspectiva do liberalismo político.
Talvez não seja
essa a perspectiva de Ortellado, que não pode ser deduzida arbitrariamente do
seu artigo. Por isso é preciso deixar de pé a hipótese de que ele faz uma
crítica usando o sarcasmo como estratégia argumentativa. Mas seguindo ainda a
sugestão de que o STF, de um modo geral e o ministro Moraes, em particular,
estariam agindo como institucionalizadores de contrademocracia, cabe seguir
tentando entender do que se trata, para além de duelos políticos conjunturais.
Partindo anteriormente
de perspectiva distinta de Rosanvallon, o cientista político estadunidense
Robert Dahl falava, em sua teoria da poliarquia, atualizada em finais do século
passado (“A democracia e seus críticos”, de 1989, publicado pela Martins
Fontes, em 2012), de "quase-guardiania", como instituições a
princípio não democráticas, para ele aceitáveis e necessárias para proteger
minorias de impulsos despóticos de governos assentados em maioria eleitoral,
desde que dentro de limites que não anulem a primazia do princípio da maioria.
O último caso caracterizaria uma guardiania, incompatível com uma poliarquia. É
possível interpretar o sentido de poderes do STF como “quase-guardiania”.
Pelo que posso
entender de Rosanvallon, a ideia de Dahl não satisfaz porque não acolhe
componentes antissistêmicos de sentimentos públicos rebeldes hoje relevantes
nas democracias. Atitudes igualmente rebeldes como vigilância civil ativa de
mandatos e governos representativos; impedimento de decisões políticas por
movimentos contestatórios e demandas de penalização de atores políticos pelo Judiciário
tornam politicamente delicada a busca de legitimação e institucionalização de
sentimentos e atitudes rebeldes. Como reconhece o próprio Rosanvallon, a radicalização
desses impulsos pode disseminar e legitimar, de roldão, concepções e práticas de
uma “política pura do impolítico”. Aí
estaria uma linha tênue a separar os populismos de extrema-direita das várias interpelações,
mais ou menos populistas, de vertentes progressistas e de esquerda. Estariam,
uns e outros, distanciados da perspectiva da democracia representativa liberal.
Esta, por sua vez, segue procurando enfrentar, com suas regras e valores, esses
sentimentos tendentes a enfraquecê-la.
Um
enfraquecimento por infecção é, obviamente, a implantação de regimes iliberais,
como se fez na Hungria, tenta-se fazer nos EUA e presumivelmente seria feito no
Brasil se Bolsonaro pudesse voltar. Nesse "se" diferencial reside a
legitimação de Moraes como encarnação de um bem que refrata um mal.
Mas não se pode deixar
de interpelar o equilibrismo dessa sociologia histórico-política, pensando que
pode haver também fagocitação, por distintos atores da democracia
representativa, em aliança tácita, não por conspiração, embora acertos entre
eles possam ocorrer. Tal processo permitiria:
A) constranger mandatos eletivos em prol de imperativos sociais; B)
tornar eficaz a contestação pública do sistema por movimentos de ação direta;
C) judicializar radicalmente a política, com hipertrofia de poderes judiciais.
Estaremos vendo
fantasmas se virmos no Brasil de hoje, ao menos uma confluência de "A"
e um quase "C"? Se sentimentos
contestatórios de alta intensidade ganharem as ruas também, então poderemos ter
a aliança completa para uma fagocitação da democracia representativa. Como se desmemoriados
do que se passou no Brasil há menos de uma década, estamos costeando o
alambrado de um novo exercício de exorcismo dos demônios da política. Até aqui,
o que tem salvo a política representativa desse novo abalo desconstrutor é sua
aliança tácita com o ceticismo popular, recentemente ampliado. Mas até quando?
Se não surgir
algum tipo de laço carismático para tornar mais sólida essa aliança entre
políticos e eleitores não alistados na guerra em curso, poderemos ter, em 2026,
na melhor das hipóteses (a pior, não se pode nem imaginar), a prorrogação do
ponto morto em que nos encontramos. Ponto morto e pantanoso, disfarçado pela
pirotecnia de embates entre fabulações polares e tortas sobre o Brasil real.
Apesar de
presságios de amargura, posições moderadas do centro à centro-direita seguem
interessadamente condescendentes com a falta de acuidade estratégica da
oposição, crendo piamente que ela será capaz, em suas mesquinharias, de se
unificar nas eleições, fora da sombra extremista de Bolsonaro e da sua ampla
reputação de golpista da democracia, agora reforçada pela condição de
conspirador contra a soberania do país. Condescendência análoga grassa do centro à
centro-esquerda, onde se parece crer que a perspectiva de uma renovação
"biológica" em 2030 justifica atrelamento acrítico e paralítico a uma
estratégia de facção que não distingue minimamente obrigações de governo de
propósitos de reeleição do seu chefe ou da eleição de quem ele ungir com seus
santos óleos.
A situação é
ainda mais perigosa que a indicada por essas mornas omissões interessadas de
moderados dos dois campos. Os carismas
cadentes de Lula e Bolsonaro parecem terceirizar seu duelo para mantê-lo vivo. Apelam,
respectivamente, a Moraes e a Trump. O que esperar daí? Que esses supostos
terceiros se comportem razoavelmente e sirvam apenas de biombos a protagonistas
políticos declinantes? Ou seus desempenhos podem levar a uma inversão de papéis
entre protagonistas e coadjuvantes? É assustador assistir a simultâneos flertes
dos polos de nossa elite política com o sacrifício da soberania nacional de um
lado, e com a tutela judicial da democracia política, de outro. Noves fora Dahl
e Rosanvallon, não haverá teoria que nos imunize contra efeitos dessa
indigência política prática.
*Cientista político
e professor da UFBA
Nenhum comentário:
Postar um comentário