Os livros, textos e conversas com Alberto Passos Guimarães, um intelectual autodidata, me auxiliaram a entender não só a realidade do campo brasileiro como também a natureza da intervenção militar de 1964. Junto com Giocondo Dias, Alberto Passos foi o primeiro a destacar que 1964 não tinha sido um golpe – algo passageiro e sem maiores consequências históricas – nem uma revolução – que implicava uma alteração do modo de produção e distribuição das mercadorias. O que houve, isto sim, foi uma mudança de regime, com o estabelecimento no núcleo do poder de uma nova facção dominante, diferente daquela comandada pelo Governo Jango. Para mim, este é o diagnóstico mais preciso da natureza da intervenção político-militar de abril de 1964.
Um dos formuladores mais talentosos que o Brasil já teve no decorrer do século XX, Alberto Passos Guimarães conhecia profundamente a situação agrária brasileira. Nunca é demais lembrar as marcas que o mundo rural deixou no Brasil. Elas são visíveis até hoje, inclusive na Cultura. Assim, temos o cinema de Amâncio Mazzaropi, Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha, a música de João Pernambuco, Tião Carreiro, Almir Sater, Renato Teixeira e Dominguinhos e os romances de Rachel de Queiroz, Jorge Amado, José Lins do Rego, José Cândido de Carvalho, Monteiro Lobato, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, cujos personagens compunham tipos humanos bem característicos da cena brasileira. E Alberto Passos Guimarães foi ainda um dos primeiros a chamar a nossa atenção para o peso das massas excluídas no Brasil contemporâneo. E não só: tinha qualidades pessoais raras, a começar pelo fato de estar sempre atento ao que o outro poderia dizer. Extremamente afável, ele me ensinou muito, sobretudo no tocante à maneira como se organizou a resistência à ditadura militar.
Com as leituras que fiz dos ensaios sempre lúcidos de Zander Navarro, vi com clareza cada vez maior a complexidade dos problemas que rondam a realidade do campo no Brasil. Isto é, não adianta combater o capitalismo no campo sob a ótica do pré-capitalismo, como defendem alguns movimentos e correntes políticas. Isso tem mais que ver, por vezes, com as propostas narodniks durante o século XIX na velha Rússia do que com um exame acurado da situação brasileira de hoje. Significa se colocar do lado contrário ao desenvolvimento das forças produtivas. Para aqueles que desejam se aprofundar nessa questão, eu recomendaria a leitura do sempre atual opúsculo, Quem são os amigos do povo, trabalho datado de 1894, de autoria de Vladimir Lenin.
O campo brasileiro modernizado, para além de altamente produtivo a ponto de ultrapassar em muitos aspectos até mesmo a agricultura norte-americana, talvez seja o setor mais dinâmico da nossa economia, o mais inovador sem dúvida do ponto de vista tecnológico. E nem sempre se apresenta como atividade ecologicamente predadora. Em 2025, o Brasil se apresenta como o terceiro produtor mundial de alimentos, apesar de termos o potencial de avançar ainda muito mais. Basta dizer que 15 % dos nossos agricultores são analfabetos e 37% escrevem e leem apenas o básico, estando, portanto, pouco inclinados a implementar inovações tecnológicas em suas terras. Há muito caminho ainda pela frente.
Eu comecei a despertar para a questão agrária por intermédio das observações de meu pai, que deu assessoria ao economista e deputado gaúcho Fernando Ferrari, um dos maiores estudiosos do campo brasileiro e elaborador do Estatuto do Trabalhador Rural, aprovado em 1963. Data do mesmo ano seu livro Escravos da Terra, que tanto mexeu com o Brasil daquele tempo. Eu me lembro ainda hoje de Ferrari em nossa casa, quando de suas viagens ao Rio de Janeiro. Em uma dessas oportunidades, ele veio ao Rio para o lançamento de um livro seu, o que aconteceu em uma livraria ao lado de nosso prédio, em Copacabana. Morreu em um desastre, desfalcando enormemente o campo progressista brasileiro e os estudos agrários.
*Ivan Alves Filho, historiador
Nenhum comentário:
Postar um comentário