Folha de S. Paulo
Estratégia externa requer cálculo fino,
discreto profissionalismo e muita contenção na retórica
Os ferozes ataques desfechados por Donald Trump contra
a democracia brasileira e o comércio bilateral do país com os Estados
Unidos têm se revelado uma inesperada oportunidade de reafirmar
alguns princípios que de há muito norteiam a política externa brasileira –e,
com base neles, definir com a clareza possível estratégias globais e objetivos
regionais.
As condições são especialmente delicadas por duas razões, pelo menos. Uma é a imprevisibilidade gerada pela conduta errática do truculento presidente norte-americano, que parece querer dar vida às representações mais caricatas do imperialismo que, ao tempo da Guerra Fria, inundavam os manuais do marxismo soviético e eram adotados, feito Bíblia, pelos simpatizantes da pátria do socialismo em toda parte. Com Trump, Tio Sam está de volta como farsa trágica.
Outra razão é a virtual paralisia das
instituições multilaterais estabelecidas depois da Segunda Guerra, em especial
daquelas que formam o chamado Sistema das Nações Unidas e a Organização Mundial
do Comércio (OMC).
Para o Brasil, representaram valiosos espaços de amplificação de sua voz nos
assuntos internacionais.
É fato que pelo menos dois arranjos
multilaterais ganharam importância nos últimos tempos: o G20 e
o Brics.
Mas não há clareza sobre o que pode acontecer com o primeiro –e único a reunir
países do Norte e do Sul– se Washington resolver sabotá-lo. E o segundo
arranjo, em que pese a sua expansão, ainda está longe de ser a nova face do
multilateralismo, como imaginam alguns.
No livro recém-lançado "The Non-Aligned World" (o mundo não alinhado), três respeitados autores
chilenos, Jorge Heine, Carlos Fortin e Carlos Ominami, advogam que os países
latino-americanos deveriam pautar suas políticas exteriores pelo não
alinhamento ativo. Propõem a recusa da neutralidade e do distanciamento das
questões mundiais. Ao contrário, sugerem que as nações tomem posição sobre
problemas internacionais, caso a caso, sem cerrar fileiras sistemática e
automaticamente com as grandes potências –Estados Unidos e China.
Esse parece ser o caminho que o governo do
país vem tateando, depois do tarifaço. Assenta-se na duradoura tradição de
universalismo e pragmatismo da diplomacia brasileira. Ambos levaram o Brasil a
estabelecer laços comerciais e relações diplomáticas, fossem quais fossem a
natureza dos regimes e a orientação política dos respectivos governos.
A estratégia também se traduz no esforço de
pôr em pé, já não sem tempo, o acordo Mercosul-União Europeia; no diálogo com a
China sobre comércio; na troca de ideias com a Índia; na cordial recepção ao
novo presidente do Equador, eleito por um partido de direita –o que soa como
tentativa de despolitizar as relações com os vizinhos latino-americanos. As
manifestações do Itamaraty e a recente entrevista do assessor internacional da
Presidência, ministro Celso Amorim, ao programa "Roda Viva", da TV
Cultura, parecem confirmar a nova orientação.
Para se tornar compromisso crível, a
estratégia de não alinhamento ativo requer cálculo fino de cada iniciativa;
profissionalismo no trato das questões espinhosas; e muita contenção na
retórica, especialmente diante das provocações e ameaças disparadas da Casa
Branca, dia sim, outro também.
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