quinta-feira, 21 de agosto de 2025

O ‘patriotismo’ do Outro (sim, com ‘O’ maiúsculo), por Eugênio Bucci

O Estado de S. Paulo

Os pecados destes ‘patriotas’ talvez sejam redimidos pelo ente que paira ‘acima de todos’, menos de Trump. Mas poderá a nação brasileira anistiá-los por antecipação?

Os “patriotas” das arruaças, do culto às armas e das camisetas amareladas ganharam votos gritando “Brasil acima de tudo” e “Deus acima de todos”. Dupla pobreza de espírito. O primeiro slogan nunca passou de um plágio de mau gosto do bordão nazista Deutschland über alles (“Alemanha acima de tudo”). Quanto a “Deus acima de todos”, bem, nenhuma novidade. O Altíssimo assim é chamado por habitar supostamente píncaros celestiais insuperáveis. Quanto ao mais, o dístico nunca parou de pé: Deus deveria ser posto acima do Brasil ou seria o contrário?

Com o tempo, ficou evidente que os tais “patriotas” eram na verdade estrangeirotas: patriotas do estrangeiro. Um deles, em 2017, numa excursão à Flórida, chegou a bater continência para uma bandeira dos Estados Unidos estampada numa tela eletrônica. Ao microfone, o voluntário da servidão incondicional confessou: “A minha continência à bandeira americana”. Em 2019, o mesmo personagem arriscou um “I l ove you” para Donald

Trump, que passava por ali apressado. Em síntese, o que eles queriam dizer era “Brasil acima de tudo”, desde que não acima dos Estados Unidos, e “Deus acima de todos”, menos de Donald Trump.

Outro dos “patriotas” fugiu do Brasil e dá expediente em Washington, onde faz reuniões obscuras com autoridades obtusas de um governo tanático para articular sabotagens contra a economia brasileira e chantagens contra as autoridades daqui. A infâmia chegou a tal ponto de histeria e absurdos que o clã vem sendo classificado como traidor. Procede.

Há gente capacitada escarafunchando os regimentos do Poder Legislativo para detectar as tipificações do desvio, enquanto bons oradores vão a comícios para criticar esse “patriotismo” lesa-pátria. Têm razão. O problema é que existem aqueles que fingem não ver nada de esquisito. Como alertálos? Incrível como não querem enxergar. O esquisito, o atípico, é o que temos hoje de mais fatídico, mais cínico, mais explícito e mais apodítico.

Num dos livros do psicanalista francês Jacques Lacan,

Quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, lemos que “o desejo do homem é o desejo do Outro”. Devíamos buscar nessa chave analítica uma luz para entender o “patriotismo” que se define pelo negacionismo da Pátria e se ajoelha diante da bandeira alheia para rifar a sua própria.

A frase de Lacan – “o desejo do homem é o desejo do Outro” – ensina, entre outras coisas, que um cidadão genérico, uma pessoa como eu ou você, com todo o respeito, quando deseja, expressa menos um desejo original, pessoal, e mais o desejo dominante da ordem simbólica que o contém. Esse Outro com “O” maiúsculo não é um outro qualquer, como um cunhado ou um colega da repartição, mas um senhor sobre-humano, capaz de ordenar o desejo dos mortais de carne e osso – sobretudo daqueles mortais que não têm nada de coluna vertebral, como é o caso. O Outro maiúsculo não se compadece de nada nem de ninguém. Exemplos? Aqui estão: a autoridade sobre a qual se erigiu a Igreja Católica, ou a sua pedra fundamental; o capital, igualmente; o imperialismo que anima a Casa Branca. O desejo do homem é o desejo que o Outro, maiúsculo, diz ao homem, minúsculo, para fazer de conta que sente.

Você pergunta a um gerente de marketing, um dirigente sindical ou um operador da bolsa qual o ideal de beleza que ele tem e ele começa a descrever minuciosamente a Barbie. O desejo, nele, é o dedo em riste do Tio Sam, mas ele mesmo não sabe. Barbie para todos.

O “patriotismo” dos trumpatetas brasileiros reproduz a fórmula do “desejo do Outro”, mas em tintas rastaqueras. Adestrados pelos filmes de Tom Cruise, de Stallone e de Chuck Norris, os “patriotas” do Outro são tão rasteiros que nem souberam substituir a bandeira dos Estados Unidos pela do Brasil na hora de fazer seu teatrinho. Encenam uma paródia tosca: adoram uma bandeira que não é a deles, numa terra que não lhes concede um reles passaporte.

Dá pena. Tanta pena que o suposto Deus poderá perdoálos, pois eles, ainda que premeditem com vileza o mal que querem fazer ao Brasil, não sabem o que fazem. Talvez seus pecados sejam redimidos pelo ente que paira “acima de tod o s ” , menos d e Dona l d Trump. Mas e quanto à nação brasileira? Poderá ela anistiálos por antecipação? Poderá tratá-los como semoventes inconscientes e inconsequentes – o que, de resto, eles são?

Espera-se que não. Em 1947, o Partido Comunista Brasileiro foi cassado porque seu líder, Luiz Carlos Prestes, teria dito numa entrevista que, numa guerra entre Brasil e União Soviética, ficaria do lado de Stalin. A verdade é que Prestes nunca disse isso, apenas fez um raciocínio hipotético: se o Brasil apoiasse uma guerra imperialista contra o Kremlin, ele lutaria para derrubar o governo brasileiro. Foi uma declaração de mau jeito, sem dúvida, e ela serviu de pretexto para colocarem o PCB na clandestinidade, injustamente. Agora, o caso é muito mais sério. Os “patriotas” do Outro se associaram ativa e publicamente a uma potência estrangeira para mover covardemente uma guerra comercial, diplomática e moral contra o Brasil. E aí? •

 

Nenhum comentário: