CartaCapital
A ação policial no Rio de Janeiro contra o
Comando Vermelho fere princípios humanitários e judiciais
A cultura do cancelamento, como fenômeno
contemporâneo, em geral busca silenciar indivíduos ou organizações que
expressam ideias consideradas inaceitáveis para determinado grupo ou sociedade.
A prática costuma dar-se em ambientes digitais, caso das redes sociais, e
suscita discussões sobre liberdade de expressão e censura. Não raro, alguém
cancelado na internet é submetido a um linchamento virtual que envolve ameaças
e agressões verbais, além, é claro, do aniquilamento de sua reputação.
A gravidade dessa questão tem motivado a criação de mecanismos de criminalização desses ataques. Um exemplo é o Projeto de Lei 1.873, de 2023, que tramita na Câmara dos Deputados e propõe a tipificação do crime do cancelamento virtual, determinando sanções para quem praticá-lo. É uma preocupação bastante pertinente, calcada em novos fenômenos sociais decorrentes de formas de convívio advindas da digitalização e de interações a distância.
Porém, e digo isso sem relativizar o problema
supracitado, é necessário jogarmos luz sobre outro tipo de cancelamento.
Trata-se de uma forma de linchamento que desobedece a leis vigentes e que
acontece não por conta de um ponto de vista manifesto circunstancialmente, mas
fruto de distorções seculares, que eventualmente acabam institucionalizadas,
ainda que contrariando preceitos de um Estado Democrático de Direito. É o caso
do que ocorreu nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro.
Como se sabe, não existe pena de morte no
Brasil. Isso é constitucional. A Carta Magna também assegura aos brasileiros
amplo direito à defesa, no âmbito da Justiça. Posto isso, a operação policial
efetivada no Rio, em 28 de outubro, contra o Comando Vermelho fere princípios
humanitários e judiciais, a despeito das alegações do governo do Estado em
relatório enviado ao STF.
É preciso um exercício maquiavélico de
retórica para emplacar a tese de que houve ali “força proporcional à ameaça”,
segundo relatado pelo governo estadual. Ou de que os policiais agiram em
legítima defesa. Ao considerarmos a disparidade entre os números de agentes de
segurança e civis mortos no confronto, entendemos melhor por onde caminha a
declaração do presidente Lula ao se referir à operação como “matança”.
Só quem é muito mal-intencionado afirma que
aqueles que se contrapõem à versão do governador carioca estão “tomando partido
de traficantes”. É preciso uma dose de cinismo para não colocar na balança o
contexto social no qual se desenvolveu o tráfico, a falta de perspectivas e de
suporte básico a uma parcela da população há tempos alijada de condições de uma
sobrevivência minimamente digna. Uma parcela da população continuamente
cancelada, e não é de hoje.
Lembremos que o Brasil foi condenado por
chacinas em comunidades do Complexo do Alemão, em operações policiais
realizadas em 1994 e 1995. A condenação, por parte da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, baseou-se em acusações contra agentes que teriam atirado em
cidadãos desarmados, além de uma denúncia de que policiais teriam estuprado
duas mulheres durante a ação. Em 2021, o Tribunal do Júri absolveu cinco
policiais julgados por 13 homicídios qualificados em 1994.
Sobre a operação de 28 de outubro, há
denúncias de mães a respeito das execuções de seus filhos. Uma delas, em
entrevista comovente, disse que desejava apenas que o filho tivesse tido o
direito de ser preso. Em vez disso, foi executado. Silenciado.
Sumariamente cancelado. Ela o encontrou na mata, com os punhos amarrados, com
ferimentos de faca e de tiro. Essa mãe questionou ainda o efeito prático das
mortes para a geração de melhores condições de vida aos jovens e demais
integrantes da comunidade.
A mesma indignação pode ser estendida às
mudanças sociais efetivas após as chacinas de 1994 e 1995 e outros episódios
semelhantes empreendidos na gestão do próprio governo atual do Rio. O que
mudou, o que de fato muda na realidade dos moradores após operações como essas
e a mais recente, de outubro? Continuarão esses jovens privados de educação,
cultura, lazer, oportunidades de crescimento pessoal e profissional? Sem contar
o nível de politização da segurança pública que se verifica nessas ocasiões.
Essa reflexão precisa ser aprofundada,
adicionando ao debate a possibilidade de classificar organizações criminosas
como CV e PCC na categoria de terroristas. Sem um aprofundamento legitimador de
ideias e ações, muitos seguirão a se comportar como haters, patinando na
dicotomia sanguínea estéril e limitada do “mocinho versus bandido”, que levará
a mais desumanização, cancelamento e mortes, sem solução para um problema de
toda a sociedade. •
Publicado na edição n° 1387 de CartaCapital,
em 12 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa
de CartaCapital sob o título ‘Cancelados na Operação Contenção’

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