A República herda os males do Império.
Os primeiros ideólogos do primarismo, implícita nele a dependência e a alienação de um projeto de nação e de país, destacaram-se ainda antes da Independência, e um de seus ícones certamente é o Visconde de Cairu, defensor da abertura comercial e de nossa integração atlântica — necessariamente dependente — como fornecedores de produtos primários (Princípios de economia política, 1804). Teófilo Otoni, meio século adiante, insistiria na prioridade brasileira da agricultura de exportação (Discursos parlamentares, 1850). Um pouco mais tarde (1870–1888), às vésperas da despedida da monarquia, o Partido Conservador, chefiando o último gabinete de Pedro II, proclama nosso destino como “um país agrícola por natureza” e “a lavoura como o esteio da nacionalidade”.
Essa ideologia domina o país, ainda hoje,
nada obstante a República, nada obstante o movimento de 1930, nada obstante
os esforços industrialistas, a crise do café e as iniciativas do
getulismo no “Estado Novo”.
Nos anos 1940, nos estertores da Segunda
Guerra Mundial, o mantra conservador e antidesenvolvimentista ainda faz escola.
Seu mais importante formulador será o engenheiro-economista Eugênio Gudin,
liberal ortodoxo. Sua tribuna são a universidade, a grande imprensa, o
Estado (foi ministro da Fazenda no governo Café Filho, 1954–1955) e, talvez
principalmente, a Fundação Getúlio Vargas, onde funda o Instituto Brasileiro de
Economia (IBRE) e a Revista de Economia, castelo forte do pensamento
conservador e monetarista que mais tarde dará sustentação à política econômica
da ditadura. Escreveu Princípios de economia monetária (1943), e sua
vasta colaboração em O Globo está reunida em O pensamento de Eugênio
Gudin, editado pela FGV. O patriarca do pensamento econômico conservador
retoma a tese da “vocação agrícola do país”, combate o planejamento —
acusado por ele como instrumento de “desequilíbrios inflacionários” — e investe
contra qualquer política de proteção ao similar nacional e toda sorte de
estímulo ou incentivo à produção industrial. Nos anos 1940 enfrentou polêmicas
com Roberto Simonsen, líder industrial paulista e defensor, desde os idos de
1930, do planejamento industrial.
A industrialização como raiz do
desenvolvimento toma corpo político nos governos Vargas e JK e, no plano
teórico, nas formulações de Ignácio Rangel (superação da estrutura
agrário-exportadora) e Celso Furtado, o mais fecundo dos analistas da formação
econômica do país no século passado, com importante passagem pela administração
pública. Foi superintendente da Sudene nos governos JK (1956–1961) e Jânio
(1961), e ministro do Planejamento no período João Goulart (1961–1964),
quando teve seus direitos políticos cassados pelo regime militar.
Nos anos 1950, em contraste com os países que
se desenvolviam, o Brasil era ainda uma economia essencialmente
agrário-exportadora, marcada por forte dependência das vendas de café, algodão
e cacau; a industrialização incipiente se concentrava nas regiões Sudeste e
Sul. A indústria de transformação representava pouco mais de 20% do PIB, mas
era voltada sobretudo à substituição de importações de bens de consumo leves —
têxteis, alimentos processados, calçados etc. —, com reduzida presença de setores
de bens de capital e tecnologia. Algo como 50% da população viviam no campo, e
o analfabetismo lavrava. O sistema produtivo permanecia dependente de
importações de insumos industriais, de máquinas e de tecnologia, além de
sensível às flutuações externas de preço das commodities e às
seguidas crises cambiais.
Na abertura da década, no outro lado do
mundo, um país devastado — com renda per capita inferior à de quase toda a
América Latina, industrialização em seus primeiros vagidos, baixa produtividade
agrícola, 80% de sua população pobre ou paupérrima morando no campo, taxa de
analfabetismo que ultrapassava os 80% — cobrou a atenção do planeta ao anunciar
uma revolução fora dos padrões ocidentais. Era o Estado maoísta, um processo de
reconstrução nacional sob economia planificada, priorizando a reforma agrária e
a criação de uma indústria pesada estatal.
Nos anos 1950 e 1960, essa China ainda
reproduzia a matriz do modelo soviético de desenvolvimento, com ênfase em
siderurgia, geração de energia e produção de máquinas de baixo nível
tecnológico, mas lançava as bases de uma industrialização autocentrada e de um
sistema de ciência e educação estatal, que, décadas depois, permitiriam a
transição para o capitalismo de Estado reformado de Deng Xiaoping e o salto
tecnológico das reformas a partir de 1978, vencida a “Revolução Cultural”.
Mas era uma China posta a pique. Exaurida,
vinha da Segunda Guerra Mundial, da invasão japonesa (1937–1945), do devastador
colonialismo britânico (século XIX e início do XX) e de sua “Guerra do Ópio”
(1839–1842 e 1856–1860); e, ao fim, vinha ainda de uma guerra civil que, em
cerca de 22 anos (1927–1949), matara aproximadamente 2% de sua população — algo
entre 1,5 e 2 milhões de pessoas.
Aqui, abaixo do equador, estávamos afastados
das garras do colonialismo europeu; não contávamos com ameaças à nossa
integridade territorial, chegávamos da Segunda Guerra como vitoriosos e
amealhávamos divisas. Importávamos matéria plástica, petróleo barato,
consumíamos Coca-Cola, revistas em quadrinhos, mascávamos chicletes e
namorávamos o cinema estadunidense.
Na década anterior, patrocináramos um
movimento inter-oligárquico, conhecido como “Revolução de 1930”, que
abrira caminho para a modernização do Estado. Em 1945, abandonáramos uma
ditadura modernizante para ingressar em uma democracia representativa e, em
1950, elegíamos um governo trabalhista que ousava falar na emergência da classe
trabalhadora.
Nada sugeria a persistência de nosso atraso —
o atraso que recusávamos reconhecer. Parecíamos nos contentar com nosso papel
subalterno e com nossas limitadas expectativas de futuro.
Enquanto o Brasil se desindustrializava e
permanecia sitiado pelo padrão primário-exportador (70% de nossas exportações,
ainda hoje, são commodities, enquanto 80% das importações estão na conta
de manufaturados), a China, entre 1975 e 2023, saltava de um subdesenvolvimento
mais profundo e complexo do que o nosso para se tornar a maior plataforma
manufatureira do planeta: 90% de suas exportações hoje são industriais.
Permanecemos, neste 2025, na periferia
atrasada do capitalismo, no Sul global, cuidando de nossas exportações de commodities e
da importação de tecnologia e bens manufaturados. Observe-se, porém, que o
gigante asiático não obrou milagres. A história desconhece acasos, e a economia
rejeita prodígios.
Senão, vejamos:
Nos anos 1970, tanto o Brasil quanto a China
investiam algo como 2% de seus respectivos PIBs em pesquisa e desenvolvimento;
a paridade dos números, porém, não revela a distinção dos projetos políticos.
Aqui começam as diferenças de fundo que também vão determinar futuros
essencialmente diversos.
A partir de 1999, a China multiplica seus
investimentos para, em 2024, destinar 2,6% de seu PIB (663 a Ciência,
Tecnologia e Inovação, enquanto nós nos conformamos com apenas 1,2% de nosso
PIB, cifra inferior à alcançada no já longínquo 2003. Ademais, a partir de
1990, nos déramos à irresponsabilidade política de descontinuar a estratégia de
coordenação Estado–indústria–conhecimento, gerando óbvias consequências
negativas na desindustrialização e na crescente dependência tecnológica, que
coarta nosso desenvolvimento.
Em 1978, já sob a liderança de Deng Xiaoping,
a ( levara a cabo o chamado “ciclo de reforma e abertura”, revendo sua
estratégia de desenvolvimento. O Estado coordena o complexo educação–pesquisa
científica–política industrial como um único projeto nacional de
desenvolvimento, com definição clara de políticas prioritárias e investimentos
persistentes na formação de matemáticos e engenheiros — no mesmo período em que
o Brasil, no rastro das crises econômicas do final da década de 1970 e início
dos anos 1980, ingressa num ciclo de descontinuidade dos projetos estratégicos
e de redução da capacidade do Estado de coordenar investimentos e manter
políticas estruturantes.
O Estado, aqui, tem reduzida sua capacidade
de coordenar investimentos em ciência e tecnologia, desfaz-se de uma política
industrial de longo prazo e compromete a formação de cadeias produtivas
complexas. Como efeito cumulativo, agrava-se a dependência tecnológica externa,
sobretudo na importação de equipamentos e processos industriais.
Em 2024, a diferença entre os dois modelos —
e a distância entre os dois níveis de desenvolvimento — encontra-se
consolidada. A China investe cerca de 2,5% do PIB (1,93 trilhões de US dólares)
em pesquisa e desenvolvimento, formando uma economia com crescente
autonomia tecnológica e protagonismo global em áreas como energia renovável,
eletrônica, telecomunicações, semicondutores, inteligência artificial e
produção farmacêutica avançada. O Brasil investe aproximadamente 1,2% de seu
PIB (663 bilhões de US dólares) em P&D, grande parte
concentrada em universidades públicas, com mínima participação do setor privado
na geração de inovação.
As multinacionais investem em suas
matrizes, e a indústria nacional opta por pagar royalties.
Em síntese, enquanto a China consolidou a
ciência e a tecnologia como eixo de seu desenvolvimento econômico, social e
político, no Brasil persistem a instabilidade orçamentária e a dominância do
mantra de um ajuste fiscal, que não encontra explicação fora do império do
neoliberalismo e de nossa dependência política e ideológica do grande capital.
O Fundo Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (FNDCT) é a principal fonte brasileira de fomento à
ciência e tecnologia, e dele dependem tanto a pesquisa universitária quanto os
investimentos privados em inovação. Seus recursos orçamentários, em obediência
ao mantra do ajuste fiscal, sofreram, em 2025, um corte de 29%, o que
corresponde a algo como R$ 31,3 bilhões.
A explicação de nosso atraso, principalmente em face do desenvolvimento acelerado da China, não se deve, pois, à disparidade dos números, mas à sua causa: a disparidade dos projetos, de sua continuidade e descontinuidade e, principalmente, da extrema diversidade das estratégias.
Tudo tem seu preço, e as consequências, como ensinava o conselheiro Acácio, vêm
depois.
***
Ainda o mantra — Lê-se no Valor de
06/11/25: “BC mantém juros em 15%, mas vê melhora da inflação e moderação da
atividade”. Ou seja, não apenas o chamado “mercado”, mas a própria autoridade
monetária, que deveria servir ao conjunto do país, diz ser positiva,
em país com as características do nosso, a retração econômica — pois só o que
importa é o controle da inflação, como doutrinava Eugênio Gudin. Como
prosperar?
Enquanto isso... — O Comitê Central
do Partido Comunista da China encerrou no final de outubro último sua plenária,
definindo as diretrizes do 15º Plano Quinquenal (2026–2030), instrumento de
planejamento centralizado que orienta o desenvolvimento econômico, social e
tecnológico do país. O novo plano prioriza a transição de um crescimento
acelerado para um crescimento de qualidade, com foco em inovação científica,
autossuficiência tecnológica e sustentabilidade ambiental. Prevê avanços em IA,
semicondutores, energia limpa e robótica, além de metas de neutralidade de
carbono até 2030. Inclui ainda políticas de aumento da renda, ampliação do
bem-estar social e fortalecimento da governança pública e da coesão cultural.
Trata-se, segundo seus formuladores, “de um passo estratégico para consolidar o
projeto de uma China socialista moderna, próspera e ambientalmente equilibrada
até 2035”. O silêncio sobre o tema por parte das empresas de comunicação
sediadas no Brasil é ensurdecedor.
***
Marx na Big Apple — Merece festejos a
eleição de Zohran Mamdani, muçulmano e autodeclarado socialista, para a
prefeitura de Nova York, berço do autocrata Donald Trump. O novo prefeito tem
toda sorte de desafios pela frente, a começar pelo de combater as desigualdades
sociais em um sistema que não cessa de reproduzi-las. Terá, também, de
enfrentar o conservadorismo do establishment democrata. Tudo faz
crer que buscará governar para toda a cidade, e não apenas para a
gentrificada ilha de Manhattan; e espera-se que possa conter as investidas
criminosas das milícias anti-imigrantes arregimentadas pelo presidente. Se
conseguir, não terá sido pouco.
Genocídio em silêncio — Com o
“cessar-fogo” canhestro, a Palestina, esquecida pelo mundo, saiu do noticiário,
mas o massacre continua — e não apenas em Gaza. Segundo a agência de
notícias Wafa, forças da ocupação na Cisjordânia alvejaram, na última
quarta-feira (05/11), o adolescente Murad Fawzi Abu e, impedindo a
chegada de socorro, o deixaram sangrar até a morte. Com o crime, chegam a 56 os
palestinos assassinados (os feridos passam de 200) por ataques israelenses no
campo de refugiados de Jenin desde o início do ano, quando o enclave sionista
pôs em marcha a operação “Muro de ferro”.
Delinquência no Guanabara — Ao rol de
crimes que inflam a ficha corrida do ainda governador do RJ, Cláudio
Castro (PL), que está sendo julgado no TRE do estado por abuso de poder
político e econômico, vem somar-se o de conspiração contra a soberania
nacional, que cometeu ao pedir intervenção dos EUA contra uma das facções
criminosas em ação no Brasil. Na democracia, bandido bom é bandido entregue à
Justiça — e este deve ser seu destino.
Efeméride — Herbert José de Souza, o nosso Betinho, que ainda está conosco, completaria 90 anos no último 03/11. O Brasil festeja.
*Com a colaboração de Pedro Amaral.

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