domingo, 2 de novembro de 2025

De onde vêm a malandragem, o banditismo e a truculência policial do Rio, por Luiz Carlos Azedo

Correio Braziliense

O Estado nunca se fez presente de forma permanente e legítima. A autoridade é exercida por quem oferece proteção, energia, gás, transporte ou simplesmente a paz imposta pela arma

Vamos começar por Manoel Antônio de Almeida, no folhetim “Memórias de um sargento de milícias” (1854-1855), clássico de nosso romantismo, que retrata a vida do Rio de Janeiro no início do século 19, na Corte de João VI, e desenvolve pela primeira vez a figura do malandro. Pouco antes da independência, como agora, a cidade era marcada por uma ordem social frouxa e negociável, pelo compadrio, pela esperteza e pela ausência de moral rígida, na qual emerge a figura de Leonardo, o anti-herói que ascende pela malandragem e pela proteção dos poderosos.

Estão ali retratadas as raízes profundas da cultura política e policial brasileira, na qual a lei é maleável e a autoridade se confunde com o favor, desde a criação daquela que viria a ser a Polícia Militar do Rio de Janeiro. O sargento Vidigal está vivíssimo, é o arquétipo da autoridade que oscila entre o arbítrio e a conivência, entre o Estado e o “jeitinho”, ao mesmo tempo repressor e corrupto, que encarna o poder de manter a disciplina, mas também de participar dos mecanismos informais de dominação e lucro. Mais atual impossível.

Passemos aos primórdios da República, quando saiu do prelo “Os sertões” (1902), de Euclides da Cunha, que descreve a Guerra de Canudos (1896-1987), a tragédia que mostrou um país dividido entre o oficial e o real, cuja iniquidade social era desconhecida pela classe média urbana e as suas elites de hábitos europeus. A partir daí, o sertanejo, visto inicialmente como bárbaro, místico e cidadão de segunda classe, se torna símbolo da resistência de uma população abandonada, esmagada pela força do Exército nacional, após três campanhas militares desastrosas.

Seus soldados viriam a ocupar o Morro da Previdência, no Gamboa, Centro do Rio, e formar a primeira favela do país, deslocando o padrão carioca de habitação popular dos cortiços para os barracos de madeira e zinco nas encostas. Na década de 1970, é aí que reinaria José Carlos dos Reis Encina, o “Escadinha”, traficante de drogas que fundou a Falange Vermelha, hoje denominada Comando Vermelho. Sua maior façanha foi fugir de helicóptero do presídio da Ilha Grande. Cumpriu pena, virou compositor de rap e acabou fuzilado na Avenida Brasil, após sair do presídio de Bangu para trabalhar, sem que se saiba até hoje quem o matou.

O Estado só chega às favelas e periferias pela via da truculenta força bruta, não pela cidadania. As operações policiais nos “complexos” controlados por traficantes reeditam o que aconteceu em Canudos: são expedições punitivas contra territórios estigmatizados, onde o Estado é ausente na paz e onipresente na guerra, como aconteceu nesta semana no Alemão e na Penha.

Classes perigosas

Na obra “As classes perigosas” (1953), sobre o processo de formação da marginalidade urbana no Brasil industrial, Alberto Passos Guimarães analisa como o capitalismo periférico gera exércitos de reserva de miseráveis, vistos não como vítimas, mas como ameaças à ordem. O pobre, o negro, o favelado tornam-se o inimigo interno. A repressão é naturalizada como “defesa da sociedade”, e a violência estatal é legitimada pela ideia de que há cidadãos de primeira e de segunda categoria.
Durante a ditadura, jovem pobre, preto ou pardo, não podia andar sem documento sob risco de ser preso para averiguação ou vadiagem, mesmo na porta de casa.

Já tive a oportunidade de dizer pessoalmente a Caco Barcelos: seu livro “Abusado – O dono do Morro Dona Marta” (2003), no qual documenta a ascensão de Marcinho VP no Morro Santa Marta, traça um inevitável paralelo entre a iniquidade social que deu origem ao povoado de Canudos, no sertão baiano, e a do Morro Dona Marta, na encosta de Botafogo, no Rio de Janeiro. A violência dos jagunços e dos jovens traficantes é a mesma, porém, o misticismo foi substituído pela alienação das drogas; a fé no profeta, pela liderança brutal do chefe de facção. O que não mudou foram a exclusão social e a resiliência dos moradores.

Surfista da praia do Leme (zona sul) na adolescência, Márcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP, personagem principal de “Abusado”, foi assassinado na unidade 3 do complexo penitenciário de Bangu em julho de 2003. Apontado pela polícia como integrante do Comando Vermelho (CV), Marcinho VP foi gerente do tráfico de drogas no morro Dona Marta, em Botafogo. O traficante ficou famoso em 1996, quando a equipe do cineasta norte-americano Spike Lee teve de pedir autorização sua para gravar um clipe de Michael Jackson no morro.

Barcelos expôs a sociologia viva do tráfico: uma estrutura que mistura crime, carência, religiosidade, cultura popular e brutalidade. Daí o paralelo com “Os sertões”. “Abusado” antecipa o processo de territorialização do crime — o domínio armado sobre comunidades onde o Estado nunca se fez presente de forma legítima. Nessas áreas, a autoridade é exercida por quem oferece proteção, energia, gás, transporte, ou simplesmente a paz imposta pela arma.

É nesse terreno que traficantes e milícias se enfrentam. As milícias se apresentam como “soluções de segurança” locais, mas funcionam como braços paraestatais de controle e exploração econômica, reproduzindo, sob outro nome, a lógica de segregação e medo. Um pacto perverso com policiais corruptos está na raiz dos grandes confrontos com os traficantes. Sempre que deixam de dar propina, descem para o asfalto e tomam territórios da milicia, a polícia entra em ação para restabelecer a “ordem”. A expansão das facções e a militarização das operações policiais são uma consequência lógica. Mas isso é assunto para outra coluna.

 

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