domingo, 2 de novembro de 2025

Ainda há tempo para investigar o massacre de Cláudio Castro, por Paulo Sérgio Pinheiro

Folha de S. Paulo

Morticínio deve ser avaliado sob um contexto político-eleitoral mais amplo

É aterrorizante constatar que parte da população vibre com tal brutalidade

Décadas de experiência demonstram que o uso estratégico da inteligência é o caminho mais eficaz para enfrentar o tráfico de drogas e as milícias. Operações baseadas em informações precisas reduzem riscos para a população e para os agentes de segurança. Apesar desse consenso, o Brasil insiste em ações espetaculosas e militarizadas, incapazes de desarticular redes criminosas ou atingir os fluxos financeiros que as sustentam.

recente operação no Rio de Janeiro é exemplo trágico dessa lógica. Com cerca de 2.500 agentes mobilizados, resultou em 117 óbitos —muitos com sinais de execução, tortura e queima de corpos, além da morte de 4 policiais. Essa ação altamente letal, lembrou o Alto Comissário de Direitos Humanos da ONU, Volker Türk, indica que já é tempo de "fazer cessar um sistema que perpetua racismo, discriminação e injustiça".

É intolerável que a governança democrática não consiga garantir que forças de segurança cumpram padrões internacionais de uso da força. Mais de 30 anos depois do Carandiru, onde cheguei com a Comissão Teotônio Vilela na manhã seguinte ao massacre de 111 mortes, também é intolerável que governos estaduais continuem a recorrer a extermínios como luta contra o crime. E mais aterrorizante ainda é constatar que parte da população brasileira vibre com a brutalidade e a desumanização dos moradores das comunidades vulneráveis perpetradas por sucessivos governos.

O governo do Rio agora tenta apagar as evidências de crimes inscritas nos corpos dos mortos. Não há nenhuma expectativa realista de que o governador Cláudio Castro (PL) promova laudos de necropsia independentes. Cabe ao Ministério da Justiça e à Polícia Federal assumir a investigação de possíveis crimes: execuções sumárias, torturas, fraudes processuais e abuso de autoridade. O Ministério Público Federal já cobrou providências.

O ministro do STF Alexandre de Moraes —relator da ADPF 635 (arguição de descumprimento de preceito fundamental), que regula as operações policiais no Rio e que Castro desrespeitou— determinou que o governador preste informações apresentando um relatório circunstanciado da operação, a justificativa para o grau de força empregado e a identificação das forças envolvidas.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, cobrou das autoridades brasileiras pronta investigação, assim como relatores especiais de direitos humanos do órgão, reforçando a proteção aos familiares das vítimas. Organizações civis brasileiras, como a Human Rights Watch e a Anistia Internacional, fizeram um apelo ao demandarem uma apuração independente e rigorosa.

Apesar desse clamor nacional e internacional, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, manteve um silêncio constrangedor diante dessas cobranças iniciais. No dia seguinte, contudo, ao lado de Castro anunciou a criação de um escritório emergencial para o combate ao crime organizado, unindo as forças federais e estaduais de segurança pública.

Embora a cooperação entre as esferas federativas seja, em geral, positiva, há preocupações sobre sua efetividade e possíveis riscos, especialmente se for comprovado que o governador autorizou ou incentivou a operação policial ilegal. Neste caso, ele poderá ser responsabilizado criminalmente.

massacre no Rio deve ser compreendido dentro de um contexto político mais amplo, articulado por Castro e outros governadores de extrema direita. Após a condenação e prisão de seu líder máximo e de seus aliados, esses atores políticos buscam utilizar o discurso da guerra contra o tráfico de drogas para desestabilizar o Estado federal e melhorar suas perspectivas nas próximas eleições. Além disso, tentam alinhar-se à narrativa continental de combate ao narcotráfico, atualmente liderada pelos EUA.

Para enfrentar essa ofensiva da extrema direita, é fundamental que haja uma resposta firme das instituições democráticas: uma investigação federal rigorosa, transparente e independente sobre o massacre de Castro.

Esse passo é essencial para garantir a responsabilização dos envolvidos e reforçar o Estado de Direito. Ainda há tempo para que tal resposta seja dada.

*Professor titular de ciência política da Universidade de São Paulo (USP) e ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos (2001-02, governo FHC)

 

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