Folha de S. Paulo
Morticínio deve ser avaliado sob um contexto
político-eleitoral mais amplo
É aterrorizante constatar que parte da população vibre com tal brutalidade
Décadas de experiência demonstram que o uso
estratégico da inteligência é o caminho mais eficaz para enfrentar
o tráfico de drogas e as milícias. Operações baseadas em informações
precisas reduzem riscos para a população e para os agentes de segurança. Apesar
desse consenso, o Brasil insiste em ações espetaculosas e militarizadas,
incapazes de desarticular redes criminosas ou atingir os fluxos financeiros que
as sustentam.
A recente operação no Rio de Janeiro é exemplo trágico dessa lógica. Com cerca de 2.500 agentes mobilizados, resultou em 117 óbitos —muitos com sinais de execução, tortura e queima de corpos, além da morte de 4 policiais. Essa ação altamente letal, lembrou o Alto Comissário de Direitos Humanos da ONU, Volker Türk, indica que já é tempo de "fazer cessar um sistema que perpetua racismo, discriminação e injustiça".
É intolerável que a governança democrática
não consiga garantir que forças de segurança cumpram padrões internacionais de
uso da força. Mais de 30 anos depois do Carandiru,
onde cheguei com a Comissão Teotônio Vilela na manhã seguinte ao massacre de
111 mortes, também é intolerável que governos estaduais continuem a recorrer a
extermínios como luta contra o crime. E mais aterrorizante ainda é constatar
que parte da população brasileira vibre com a brutalidade e a desumanização dos
moradores das comunidades vulneráveis perpetradas por sucessivos governos.
O governo do Rio agora tenta apagar as
evidências de crimes inscritas nos corpos dos mortos. Não há nenhuma
expectativa realista de que o governador Cláudio
Castro (PL)
promova laudos de necropsia independentes. Cabe ao Ministério
da Justiça e à Polícia Federal assumir a investigação de possíveis
crimes: execuções sumárias, torturas, fraudes processuais e abuso de
autoridade. O Ministério Público Federal já cobrou providências.
O ministro do STF Alexandre
de Moraes —relator da ADPF 635 (arguição de descumprimento de preceito
fundamental), que regula as operações policiais no Rio e que Castro
desrespeitou— determinou que o governador preste informações apresentando um
relatório circunstanciado da operação, a justificativa para o grau de força
empregado e a identificação das forças envolvidas.
O secretário-geral da ONU, António Guterres,
cobrou das autoridades brasileiras pronta investigação, assim como relatores
especiais de direitos humanos do órgão, reforçando a proteção aos familiares
das vítimas. Organizações civis brasileiras, como a Human Rights Watch e a
Anistia Internacional, fizeram um apelo ao demandarem uma apuração independente
e rigorosa.
Apesar desse clamor nacional e internacional,
o ministro da Justiça, Ricardo
Lewandowski, manteve um silêncio constrangedor diante dessas cobranças
iniciais. No dia seguinte, contudo, ao lado de Castro anunciou a criação
de um escritório emergencial para o combate ao crime organizado,
unindo as forças federais e estaduais de segurança pública.
Embora a cooperação entre as esferas federativas
seja, em geral, positiva, há preocupações sobre sua efetividade e possíveis
riscos, especialmente se for comprovado que o governador autorizou ou
incentivou a operação policial ilegal. Neste caso, ele poderá ser
responsabilizado criminalmente.
O massacre no
Rio deve
ser compreendido dentro de um contexto político mais amplo, articulado por
Castro e outros governadores de extrema direita. Após a condenação e prisão de
seu líder máximo e de seus aliados, esses atores políticos buscam utilizar o
discurso da guerra contra o tráfico de drogas para desestabilizar o Estado
federal e melhorar suas perspectivas nas próximas eleições. Além disso, tentam
alinhar-se à narrativa continental de combate ao narcotráfico, atualmente
liderada pelos EUA.
Para enfrentar essa ofensiva da extrema
direita, é fundamental que haja uma resposta firme das instituições
democráticas: uma investigação federal rigorosa, transparente e independente
sobre o massacre de Castro.
Esse passo é essencial para garantir a
responsabilização dos envolvidos e reforçar o Estado de Direito. Ainda há tempo
para que tal resposta seja dada.
*Professor titular de ciência política da Universidade de São Paulo (USP) e ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos (2001-02, governo FHC)

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