Por que estados e municípios aplicaram no Master?
Por Folha de S. Paulo
Entidades previdenciárias fizeram aportes
vultosos no banco agora quebrado, o que exige investigação
Cumpre também esclarecer os motivos para a
falha dos órgãos reguladores, sobretudo o BC, em identificar e prevenir o
problema
Com
decretação da liquidação extrajudicial do Banco Master pelo Banco Central,
o país começa a conhecer em detalhes os caminhos e participantes que levaram ao
descalabro financeiro que agora penaliza poupadores e pensionistas.
Os primeiros valores divulgados já são
alarmantes: cerca de R$ 41 bilhões a serem cobertos pelo Fundo Garantidor de
Créditos (FGC) para um total de 1,6 milhão de investidores até o limite
individual de R$ 250 mil.
Há muito mais a saber na investigação de fraude estimada em R$ 12 bilhões, envolvendo carteiras de crédito consignado falsificadas, criadas por meio de associações fantasmas. Será preciso mapear os canais de influência que permitiram ao banco, como se suspeita, inflar ativos.
Descortina-se agora outra frente: os regimes
próprios de Previdência
Social de servidores de estados e municípios direcionaram R$
1,87 bilhão para aplicações oferecidas pelo Master, sobretudo letras
financeiras —sem a cobertura do FGC. Esses títulos agora estão sujeitos a
perdas integrais ou parciais, dependendo do que sobrar da massa falida.
Entidades como Rioprevidência, do estado do
Rio de Janeiro, com R$ 970 milhões investidos, Amaprev (AP), com R$ 400
milhões, e de municípios como Itaguaí (RJ), São Roque (SP) e Cajamar (SP)
concentraram proporções elevadas de seus patrimônios —em alguns
casos até perto de 20%— em um único emissor de risco evidente.
Os recursos, destinados a pagar
aposentadorias futuras, contavam com rendimentos projetados para daqui a
décadas; agora, o desequilíbrio atuarial poderá forçar contribuições extras de
pensionistas e de governos estaduais e municipais já endividados.
Trata-se da repetição de um mal que assola o
sistema previdenciário público brasileiro: fundos estatais prejudicados por
investimentos temerários.
As entidades defendem-se com o formalismo da
legislação em vigor, que permite até 20% de aportes em títulos de bancos
autorizados pelo BC. Entretanto o espírito da norma —prudência, diversificação
e priorização de instituições de primeira linha —foi flagrantemente
desrespeitado.
O Master, longe de ser um banco sólido,
pagava até 140% do CDI para captar depósitos, sinal clássico de ânsia por
liquidez. Concentrar recursos previdenciárias em um banco médio, atolado em
operações duvidosas, passa longe de mera falha técnica.
Está claro que há muito o que modernizar na
regulação dos regimes previdenciários regionais, sobretudo na governança e
transparência das decisões de investimento. Também é preciso impedir indicações
políticas para diretorias e conselhos, que criam terreno fértil para conflitos
de interesse e desvios de recursos.
Cumpre, por fim, esclarecer os motivos para a
falha dos órgãos reguladores, sobretudo o Banco Central, em identificar e
prevenir o problema mesmo diante dos montantes que se acumulavam.
Cracolândia demanda prudência, não
imediatismo
Por Folha de S. Paulo
Criticado pelo vice-prefeito, Tarcísio
celebra fim da aglomeração de usuários de drogas no centro de SP
Ações simplistas podem render dividendos
eleitorais, mas estão longe de resolver um problema que exige resposta
multidisciplinar
O governador de São Paulo, Tarcísio de
Freitas (Republicanos), não teve dúvidas. No último dia 13, cravou em suas
redes sociais: "Sim, a cracolândia acabou". Comemorava os seis meses
completos desde que se dissipou a
famigerada concentração de usuários de drogas no centro da
capital paulista.
A prefeitura da cidade, sob comando de
Ricardo Nunes (MDB), refere-se ao assunto com mais prudência. Não celebra o
"fim" da aglomeração na rua dos Protestantes, em Santa Ifigênia; em
vez disso, prefere descrever a situação como um "esvaziamento".
E, de fato, quando se trata da cracolândia, a
experiência histórica recomenda moderação no discurso. Ao longo de mais de duas
décadas, diferentes gestões apresentaram respostas distintas ao problema.
Tiveram em comum, além da falta de sucesso, o imediatismo, como se pensadas de
olho no calendário eleitoral.
Não parece ser outra a motivação do coronel
Mello Araújo (PL) ao falar do tema. Embora seja aliado de Tarcísio e de Nunes,
de quem é vice, porta-se como adversário de ambos. Em entrevista à Folha, dispara
contra o governador e critica ações municipais, procurando atrair os
holofotes para sua possível candidatura ao Senado em 2026.
Com o fogo amigo, os três reeditam, em tons
muito mais ríspidos, a desarmonia que João Doria e Geraldo Alckmin viveram em
2017, após operação policial na região. À época governador pelo PSDB, Alckmin
mencionou uma "questão crônica", enquanto o também tucano Doria, então
prefeito, decretou: "A cracolândia aqui acabou, não vai voltar mais".
Estava errado, e é provável, embora não
desejável, que Tarcísio também esteja. Nas demais vezes em que o fluxo de
usuários de drogas se dispersou, pequenos agrupamentos se reuniam nas
vizinhanças, em ruas menos visadas, até que a multidão voltou a se formar nos
pontos originais.
A situação atual foge um pouco desse roteiro
apenas porque prefeitura e governo se esforçam para evitar a aglomeração no
local que se convencionou chamar de cracolândia. Mas isso não significa que não
existam usuários amontoados alhures.
Ações simplistas podem até render dividendos
eleitorais no curto prazo, mas elas passam longe de resolver um problema que, a
julgar pelas boas práticas internacionais, demanda resposta
multidisciplinar e de longo prazo.
Tarcísio, Nunes e, sobretudo, Mello Araújo podem até achar que estão reinventando a roda, mas apenas repetem muito do que já se disse e se fez na cracolândia —incluindo a desavença.
Enfrentar crime na Amazônia exige ação
federal e estadual coordenada
Por O Globo
Quase metade dos municípios amazônicos registra presença de facções criminosas, revela estudo
A expansão alarmante de facções criminosas
pela Amazônia exige
resposta rápida das autoridades. Quase metade (44,6%) dos 772 municípios da
região conta com a presença de pelo menos uma facção, crescimento de 32% em
relação a 2022, segundo o último levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública (FBSP). Ao todo, são 17 grupos ativos. Algumas organizações têm base
regional, como Amigos do Estado (ADE) ou Bonde dos 40. Outras são nacionais,
como Comando Vermelho (CV) e Primeiro Comando da Capital (PCC). Também há
registro de facções internacionais (Tren de Aragua e Ex-Farc Acácio Medina). As
características transnacionais e híbridas do crime na Amazônia tornam
imprescindível a coordenação entre governo federal e governos estaduais para
enfrentar tráfico de drogas, garimpo ilegal e outras atividades criminosas.
O crime tem demonstrado alto grau de
sofisticação. O CV mantém hegemonia nas rotas fluviais, em especial no eixo do
Rio Solimões. Conectado aos cartéis de Colômbia e Peru, escoa droga até os
portos localizados em Manaus, Belém, Macapá e nas cidades paraenses de Santarém
e Barcarena. O PCC adota estratégia diferente. Investe predominantemente em
rotas aéreas clandestinas, fazendo uso de pistas de pouso em garimpos ilegais e
unidades de conservação. As disputas territoriais e a reconfiguração de
alianças regionais alimentam os índices preocupantes de homicídio. Apesar da
queda recente, o Amapá segue como estado com maior taxa de assassinatos do
Brasil (45 por 100 mil habitantes). O resto da região não fica muito atrás.
Pelo tamanho do território e pelos desafios
logísticos, o combate ao crime na Amazônia é caro e difícil. Só em combustível,
uma lancha blindada da polícia gasta R$ 7 mil para percorrer 500 quilômetros
num rio da região. Nos estados do Sudeste, uma viatura policial cobre a mesma distância
com menos de R$ 300 de gasolina. Em condições assim, é fundamental garantir
orçamentos que permitam o aumento da presença policial. Felizmente, há
experiências com resultados positivos. Um dos pontos comuns entre elas é a
parceria entre os Poderes federal e estadual. Tais projetos de cooperação
comprovadamente eficazes precisam receber verbas e ganhar escala maior.
Criada pelo Ministério da Justiça, a Força
Integrada de Combate ao Crime Organizado (Ficco) foi concebida para fomentar
operações coordenadas pela Polícia Federal (PF) e implementadas em parceria com
policiais civis e militares. Nos estados do Norte, o trabalho de inteligência
da PF e contatos com autoridades da Colômbia e do Peru também têm obtido
retorno satisfatório. No Amazonas, os policiais se concentraram na detecção de
lideranças e na identificação de rotas. Um dos principais desafios para a
manutenção e expansão de programas bem-sucedidos como esses é a necessidade de
entendimento entre o governo federal e os governos estaduais. É preciso superar
as diferenças políticas nos gabinetes para que o combate ao crime organizado
funcione.
Vazamento revela desleixo do MEC com prova do
Enem
Por O Globo
Pré-teste com questões quase idênticas às que caíram na prova é falha básica de segurança
A anulação de três questões do Exame Nacional
do Ensino Médio (Enem), realizado no último domingo, deveria fazer soar o alarme
no Ministério da Educação (MEC).
Não pelo cancelamento em si, que virou caso policial (a Polícia Federal
investigará se houve vazamento). Mas pela vulnerabilidade exposta num exame que
precisa ser cercado de cuidados para impedir fraudes e garantir condições de
igualdade a todos os participantes. Diante da falha, é necessário que o governo
reveja os procedimentos.
Cinco dias antes da prova, um universitário
que vende aulas on-line como cursos preparatórios comentou ao menos três
questões praticamente idênticas às que caíram no exame. Como a avaliação é
cercada de sigilo, ele não poderia ter tido acesso a elas. Em seu perfil numa
rede social, alegou ter memorizado as questões durante pré-testes realizados
pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(Inep), órgão do MEC responsável pela aplicação do Enem. Ele é suspeito de
pagar a estudantes que participavam desses pré-testes por informações, segundo
o portal g1. O caso está sob investigação.
O pré-teste é um método usado pelo Inep para
avaliar adequação e dificuldade das questões. Apesar do objetivo nobre, ele
abre brecha a fraudes. A rigor, as questões testadas não deveriam cair na prova
num curto prazo, mas aí entra outro problema. O Banco Nacional de Itens
(repositório de questões para o Enem) está praticamente vazio, obrigando o MEC
a usar as questões no mesmo ano em que são testadas.
Os pré-testes são uma operação arriscada,
pois aumentam a probabilidade da circulação indevida. São questionados com
frequência. Exames internacionais similares ao Enem não usam essa estratégia,
segundo o ex-presidente do Inep Francisco Soares. “Para mitigar o problema, o
Inep opera com uma estrutura logística complexa, cara e ainda assim
vulnerável”, diz. Para a também ex-presidente do Inep Maria Helena Guimarães, o
MEC precisa encontrar alternativas ao modelo atual.
Não é a primeira vez que a credibilidade do
Enem é posta em xeque por suspeita de vazamento. Em 2009, a prova foi cancelada
dias antes para os 4 milhões de participantes, depois que questões foram
negociadas por funcionários da gráfica onde o exame era impresso. Em 2011,
parte da prova aplicada num colégio do Ceará foi anulada, pois estudantes
obtiveram acesso antecipado a questões no pré-teste. Tais casos mostram que o
problema é recorrente.
O Enem deste ano contou com 4,8 milhões de inscritos, crescimento substancial em relação a 2024 (4,3 milhões) e 2023 (3,9 milhões). É um sinal de recuperação depois do período de crise que sucedeu à pandemia. Por isso mesmo o vazamento ganha importância. É essencial assegurar que não haja mais abalos na credibilidade da principal porta de acesso dos brasileiros ao ensino superior, caminho para a ascensão social e o desenvolvimento do país. É preciso fechar as torneiras que facilitam as fraudes. Não é sensato testar questões que cairão na prova de forma quase idêntica meses depois. O MEC deve rever seus métodos. Não se pode abrir mão de um sistema justo e eficaz de concorrência para selecionar os melhores alunos — e não os melhores fraudadores.
Mais uma escolha política para o STF
Por O Estado de S. Paulo
Indicação de Jorge Messias resume a visão
distorcida que Lula tem do STF e sua inversão de prioridades: o presidente
privilegia a lealdade pessoal em detrimento do notável saber jurídico
A indicação de Jorge Messias para o Supremo
Tribunal Federal (STF) desvela, mais uma vez, a compreensão distorcida que o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem do papel da mais alta Corte do País.
Em vez de tratar o STF como foro de interpretação constitucional, contrapeso
republicano e guardião das garantias e direitos fundamentais, Lula o vê como
extensão da arena política, vale dizer, como um espaço no qual busca premiar
lealdades pessoais e amarrar apoios estratégicos. Nesse sentido, a escolha do
advogado-geral da União, sem currículo suficiente para integrar o Supremo, não
deixa margem para dúvida sobre o que realmente o trouxe até aqui.
Messias é mais conhecido por ter
protagonizado, como “Bessias”, um dos episódios finais do governo de Dilma
Rousseff, quando a presidente tentou nomear Lula para a Casa Civil em 2016, num
movimento desesperado para dar ao padrinho, acossado pela Lava Jato, um cargo
que lhe conferisse foro privilegiado. Messias era subchefe para assuntos
jurídicos da Casa Civil na ocasião – e não há nada mais em sua trajetória que o
transformasse naturalmente num nome adequado para o STF.
Obviamente, portanto, Messias não tem
“notável saber jurídico”, necessário, conforme o artigo 101 da Constituição,
para integrar o STF. Em seu favor, e para vergonha do País, não é o primeiro a
ser nomeado sem esse requisito, e muito provavelmente não será o último. O
problema, contudo, não reside apenas nas credenciais individuais do indicado,
mas no processo sistemático de esvaziamento do espírito republicano que deveria
orientar as indicações. Desde que retornou ao Palácio do Planalto, após ficar
580 dias preso, Lula tem feito escolhas movidas por critérios pessoais –
gratidão, confiança política, afinidade ideológica –, em detrimento de
qualificações técnicas e de uma visão institucional que fortaleça a separação
entre os Poderes.
Foi assim com Cristiano Zanin, advogado
pessoal do presidente em seus anos mais difíceis. Foi assim com Flávio Dino,
convertido em espécie de enviado especial do governo para assuntos políticos
dentro da Corte. E repete-se agora com Messias. Em todas essas indicações, Lula
manifestou desinteresse pela pluralidade interna do tribunal, inclusive pela
evidente falta de diversidade de trajetórias e perfis – tão alardeada por ele em
outras frentes. Não se pode desconsiderar, ainda, a conveniência eleitoral de
indicar Messias também pelo fato de ele ser evangélico. É lícito inferir que se
trata de um cálculo de Lula visando à aproximação com um eleitorado
notoriamente refratário ao presidente com vistas à eleição de 2026.
É lastimável que indicações para o STF sejam
tratadas como retribuição por serviços prestados, estratégia política ou
expediente de campanha eleitoral. Nem o próprio Messias esconde que é disso, a
bem da verdade, que se trata. Como mostrou o Estadão, Messias, ao assumir a
Advocacia-Geral da União, afirmou que Lula “resgatou” seu nome – e essa
gratidão, como confidenciou a amigos, ele “levaria para o túmulo”. Ora, não há
como ignorar o peso dessa declaração. A Corte que deve servir ao País, e não a
governos, muito menos a pessoas, será ocupada por alguém que associa sua
trajetória a um juramento de lealdade pessoal ao presidente da República.
O STF tem poder extraordinário no arranjo
institucional brasileiro. Julga autoridades, arbitra conflitos entre Poderes e
delimita o alcance de políticas públicas. Quanto maior esse poder, maior deve
ser o rigor na escolha de seus integrantes. A submissão do processo de nomeação
às conveniências políticas do chefe do Executivo desequilibra o sistema e
fragiliza a própria Corte aos olhos da sociedade.
Não se trata, aqui, de contestar a
legitimidade da prerrogativa presidencial, mas de lembrar seu propósito: garantir
que o Supremo seja formado por magistrados independentes, intelectualmente
preparados e comprometidos com a Constituição, não por auxiliares promovidos ao
topo da estrutura jurídica como recompensa. O País precisa de um STF que sirva
à República, não a um presidente.
Operação no Rio: um fracasso exemplar
Por O Estado de S. Paulo
Festejada como exemplo de linha dura, a ação
policial mais letal da história, segundo relatório do próprio Estado, falhou em
quase tudo e, para piorar, há poucas imagens de câmeras da PM
A Operação Contenção, realizada no fim do mês
passado nos Complexos da Penha e do Alemão, no Rio, tornou-se um marco para o
debate nacional sobre o modelo de segurança pública que o Brasil precisa adotar
para enfrentar as organizações criminosas. Se ganhou essa importância, o ideal
seria que a mais letal intervenção policial já registrada no País fosse
devidamente escrutinada pela sociedade e pelas instituições de controle, como
sói acontecer em qualquer democracia constitucional madura.
Mas, não obstante a gravidade da operação –
que culminou em 121 mortos, entre eles quatro policiais –, o governador Cláudio
Castro (PL) falhou miseravelmente em assegurar as condições mínimas para que as
ações dos policiais civis e militares sob seu comando pudessem ser devidamente
apuradas, sobretudo pelo Ministério Público, instituição incumbida pela
Constituição de exercer o controle externo da atividade policial.
O Relatório Técnico-Probatório enviado pelo
governo fluminense ao Supremo Tribunal Federal (STF), por ordem do ministro
Alexandre de Moraes no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 635, expõe falhas absolutamente inaceitáveis à luz da
dimensão daquela operação. Embora Castro classifique a Operação Contenção como
um “divisor de águas” no combate às facções criminosas em seu Estado, o próprio
relatório entregue por ele ao STF desmonta o discurso oficial. A Secretaria de
Segurança Pública do Rio atualizou os números de prisões e apreensões,
demonstrando que muitos dos mandados judiciais que originalmente embasaram a
operação deixaram de ser cumpridos. Para piorar, a pasta foi incapaz de
fornecer o elemento mais básico de qualquer operação policial moderna: o
registro audiovisual por meio de câmeras corporais instaladas no fardamento dos
agentes.
Dos cerca de 2.500 policiais mobilizados, só
uma pequena parte portava câmeras. E, desse contingente já pífio, somente
metade dos equipamentos registraram imagens. O restante, segundo o governo
fluminense, apresentou falhas técnicas ou teve as baterias descarregadas. É uma
explicação que zomba da inteligência alheia. Não há como justificar que um dos
maiores Estados do País conduza uma operação policial daquele porte
providenciando um número tão minguado de câmeras e, ademais, em prever baterias
extras a fim de garantir o pleno funcionamento dos aparelhos. Não se pode
condenar quem veja esse erro crasso de planejamento como uma ação deliberada
para inviabilizar a reconstrução dos fatos e a identificação de eventuais ilegalidades
cometidas pelas forças policiais.
Quando não se sabe exatamente o que aconteceu
durante os confrontos, abre-se espaço para a desconfiança na polícia – e isso é
péssimo para o Estado de Direito. A ausência das imagens torna-se ainda mais
grave diante dos relatos de que corpos teriam sido removidos e manipulados
antes da realização de perícia. Em qualquer parte do mundo civilizado, esse
tipo de comprometimento da chamada cadeia de custódia seria suficiente para
anular a credibilidade de toda a operação. No Brasil, onde o uso de câmeras
corporais já foi reconhecido pelo próprio STF como mecanismo indispensável à
atividade policial, até para resguardo dos próprios agentes, isso soa como
afronta ao Estado de Direito.
A discussão sobre segurança pública, contudo,
não se encerra nos eventuais erros da Operação Contenção. A escalada de poder
de facções como PCC e Comando Vermelho, que se tornaram, na prática,
organizações de caráter mafioso, exige uma abordagem nacional capaz de
coordenar políticas públicas, fortalecer investigações e impor limites claros
ao uso da força letal.
Se a Operação Contenção se converteu no ponto
de partida para essa inflexão tão necessária, torna-se ainda mais imperativo
que ela seja analisada com absoluta transparência e rigor. Não há dúvida de que
o combate às facções criminosas frequentemente exige confronto. Mas o que
diferencia policiais e bandidos é o compromisso inegociável com a legalidade. A
sociedade brasileira, exausta tanto da violência cotidiana quanto da omissão histórica
do poder público, não clama por vingança, mas por ordem, húmus da paz social. E
ordem só se constrói com operações policiais circunscritas aos limites da
Constituição.
Antissemitismo nas Arcadas
Por O Estado de S. Paulo
Baderneiros calam a voz de cientista político
judeu durante evento no Direito da USP
Palco de eventos históricos em defesa da
liberdade e da democracia, as Arcadas do Largo de São Francisco viveram uma
noite profundamente triste nesta semana. No dia 17 passado, baderneiros fizeram
de tudo para impedir que um cientista político judeu, André Lajst, conseguisse
falar num debate sobre Israel e os aspectos legais da guerra em Gaza, realizado
na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Foi o dia em que o grito sufocou o diálogo, o
ódio atacou as ideias e o cinismo venceu a inteligência na velha Academia de
Direito, também conhecida, ora vejam, como Território Livre. Esse episódio
ilustra bem a perigosa escalada do silenciamento naquela que é considerada a
melhor universidade do País.
Sob a alegação de denunciar o que chamam,
equivocadamente, de genocídio palestino, estudantes de Direito e militantes de
fora da USP interditaram, aos berros, a realização do evento intitulado
Conversas sobre o Mundo. Mas o ambiente universitário deveria ser justamente o
contrário disso. E, no Auditório Goffredo da Silva Telles Júnior – o professor
que durante a ditadura leu a Carta
aos Brasileiros nas Arcadas para defender a liberdade –, não
houve conversa.
Os dias que antecederam o evento organizado
pela professora de Direito Internacional Maristela Basso já indicavam essa
degeneração moral de parte dos uspianos. O Centro Acadêmico XI de Agosto
publicou nas redes sociais que repudiava “veementemente” a presença de André
Lajst na faculdade por se tratar de um “notório sionista” – como se defender a
existência de Israel fosse, em si, um crime hediondo. Em outras palavras, Lajst
foi impedido de falar não em razão de suas opiniões, que não puderam ser
expostas, e sim em razão de ser quem é – um judeu que defende o direito de
Israel existir.
A hostilidade aos judeus, usando como
pretexto a causa palestina, infelizmente parece estar em alta na USP. Há pouco
tempo, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) rompeu um
convênio com uma universidade israelense para protestar contra as ações de Israel
em Gaza. Por outro lado, manteve intactos convênios com universidade da Rússia,
que invadiu a Ucrânia numa guerra de caráter claramente imperialista. O
tratamento desigual dado pela FFLCH a Israel e à Rússia fala por si.
Essa hostilidade precisa ser combatida por
professores, diretores e a reitoria da USP. Os gestores devem assegurar a
convivência harmoniosa nas unidades, garantir a segurança de alunos,
funcionários e professores judeus, promover a livre circulação de ideias,
incentivar a produção do conhecimento sem vieses ideológicos e coibir as
práticas truculentas de grupelhos que se infiltram na universidade para
prejudicar a vida acadêmica.
Os alunos que impediram um judeu de falar são antissemitas que exploram a causa palestina como desculpa para destilar seu ódio. Que a direção da Faculdade de Direito da USP identifique esses estudantes violentos e os puna com rigor, para que não manchem a memória daqueles que lutaram pela tolerância, pelo diálogo e pela liberdade nas Arcadas.

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