OS ‘PROCESSOS DE TARSO’
Demétrio Magnoli
Tarso Genro é advogado de formação e, por algum motivo obscuro, imagina-se um jurista. A sua tese jurídica mais recente foi alardeada como uma chave mágica para “punir os torturadores”. O ministro do Arbítrio assim a proclamou: “Esse agente (...) que realizou uma prisão ilegal, mas que a realizou dentro das normas do regime autoritário, e levou o prisioneiro para um local de interrogatório, até esse momento, estava de acordo com o regime vigente e, por esse ato, não pode ser responsabilizado. Mas, a partir do momento em que esse agente pega o prisioneiro, leva para um porão e o tortura, ele saiu da própria legalidade do regime militar.”
Esperto como uma raposa, Tarso aponta seu dardo justiceiro para o sargento do porão escuro, que “saiu da legalidade do regime militar”, enquanto firma um compromisso explícito com a cadeia de comando acima dele: “Não são as Forças Armadas que estão em jogo aqui. Não é a postura dos comandantes, dos presidentes ou dos partidos que apoiaram o regime militar. Estamos discutindo o comportamento de um agente público dentro de uma estrutura jurídica.” A mensagem dirige-se aos “comandantes” e “presidentes”, na forma de um pacto: entreguem seus pequenos à imolação na pira da minha justiça de fancaria e eu, em troca, asseguro-lhes o fim das incertezas. Coragem moral é isso.
Classificar Tarso como ministro do Arbítrio é apenas registro factual. Partiu dele a ordem de captura e deportação dos pugilistas cubanos Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, que abandonaram a delegação de seu país nos Jogos Pan-Americanos do ano passado. O Brasil entregou-os à ditadura dos Castros violando o artigo 22 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no qual se estabelece que “em nenhum caso” um estrangeiro pode ser entregue a um país “onde seu direito à vida ou à liberdade pessoal esteja em risco de violação” em razão de suas opiniões políticas. A deportação ocorreu depois que Fidel Castro rotulou os pugilistas de traidores da pátria. Agora se conhece a razão de Tarso: ele não liga muito para os tratados entre democracias, mas respeita a “legalidade”, a “estrutura jurídica”, das ditaduras.
A régua moral de Tarso é, antes de tudo, imoral. A sua pretensão de acusar o sargento do porão como criminoso comum, absolvendo a ditadura militar brasileira, significaria torturar a História até virá-la pelo avesso. No ponto de partida dos “processos de Tarso”, o Estado estaria dizendo que a tortura corriqueira de prisioneiros políticos não mantinha relação direta com uma “estrutura jurídica” na qual o direito público à divergência e os direitos privados dos presos haviam sido virtualmente cancelados. De fato, o ministro oferece à ditadura militar a oportunidade de obter um triunfo ideológico póstumo de valor incalculável.
Mas a régua de Tarso está meticulosamente moldada com vista a uma finalidade pragmática. Na Argentina, no Chile e no Uruguai, as leis de anistia dos torturadores sofreram revisões judiciais que abriram caminho para a responsabilização dos “comandantes” e, em certos casos, até dos “presidentes”. Aqui, o ministro pretende promover um número de julgamentos simbólicos de figuras irrelevantes sem atingir o edifício da Lei de Anistia, que consagrou um compromisso indecente entre perseguidores e perseguidos.
Esculpida no apagar das luzes da ditadura e retocada no governo de transição de José Sarney, a Lei de Anistia é um contrato de compra e venda. Os mandantes dos assassinatos e da tortura de Estado compraram a impunidade, pagando-a com recursos públicos, e usufruem hoje a tranqüila aposentadoria dos tiranos. Os perseguidos pelo regime venderam o direito da Nação à memória histórica, que não lhes pertence, em troca de títulos de indenizações pecuniárias cujas cotações são proporcionais à posição e à influência de cada um. Na mesa de operações da bolsa da anistia, um José Dirceu, um Carlos Heitor Cony ou um Ziraldo bem vivos valem dezenas de anônimos assassinados sob tortura.
O contrato funciona eficientemente para os dois lados, à custa da sociedade brasileira, mas experimenta fricções quando suas bases ou seus detalhes sofrem críticas. Nessas horas, emergem os argumentos da delinqüência moral. Os compradores de impunidade ameaçam exigir processos para “os dois lados”, cancelando de passagem o direito à resistência contra a tirania. Não é preciso deixar de deplorar o ato dos seqüestradores de um embaixador, que pretendiam trocar seu cativo por prisioneiros sob tortura, para distingui-lo do ato de uma ditadura que seqüestra militantes políticos e os suplicia. A proposta de equiparação entre esses dois atos evidencia apenas que o Estado dos compradores de impunidade só pode ser anistiado na condição de milícia fora-da-lei.
Os vendedores da memória, por sua vez, almejam conferir aos anistiados o título de heróis da pátria, juntando-os todos num balaio abrangente e desenhando uma auréola de santidade sobre convictos stalinistas que só queriam substituir uma tirania por outra. A operação ideológica, realizada em cerimônias públicas da Comissão de Anistia, é um veículo para legitimar a formação de patrimônios privados a partir das rendas de indenizações.
Uma democracia tem o direito de rever as leis herdadas de uma ditadura e o dever de livrar-se das vendas que a impedem de mirar um passado abominável. Tantos anos depois, uma revisão da Lei de Anistia não poderia abrir caminho para a adequada punição judicial dos “presidentes” e “comandantes” em nome dos quais agiam os torturadores diretos, mas propiciaria, juntamente com a abertura total dos arquivos secretos, uma completa atribuição de responsabilidades históricas. O horizonte do ministro do Arbítrio é bem diverso. Ele quer incrustar na pedra da eternidade a Lei de Anistia, imolando no percurso os mais desavisados entre os anões sádicos dos porões.
Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.
Demétrio Magnoli
Tarso Genro é advogado de formação e, por algum motivo obscuro, imagina-se um jurista. A sua tese jurídica mais recente foi alardeada como uma chave mágica para “punir os torturadores”. O ministro do Arbítrio assim a proclamou: “Esse agente (...) que realizou uma prisão ilegal, mas que a realizou dentro das normas do regime autoritário, e levou o prisioneiro para um local de interrogatório, até esse momento, estava de acordo com o regime vigente e, por esse ato, não pode ser responsabilizado. Mas, a partir do momento em que esse agente pega o prisioneiro, leva para um porão e o tortura, ele saiu da própria legalidade do regime militar.”
Esperto como uma raposa, Tarso aponta seu dardo justiceiro para o sargento do porão escuro, que “saiu da legalidade do regime militar”, enquanto firma um compromisso explícito com a cadeia de comando acima dele: “Não são as Forças Armadas que estão em jogo aqui. Não é a postura dos comandantes, dos presidentes ou dos partidos que apoiaram o regime militar. Estamos discutindo o comportamento de um agente público dentro de uma estrutura jurídica.” A mensagem dirige-se aos “comandantes” e “presidentes”, na forma de um pacto: entreguem seus pequenos à imolação na pira da minha justiça de fancaria e eu, em troca, asseguro-lhes o fim das incertezas. Coragem moral é isso.
Classificar Tarso como ministro do Arbítrio é apenas registro factual. Partiu dele a ordem de captura e deportação dos pugilistas cubanos Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, que abandonaram a delegação de seu país nos Jogos Pan-Americanos do ano passado. O Brasil entregou-os à ditadura dos Castros violando o artigo 22 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no qual se estabelece que “em nenhum caso” um estrangeiro pode ser entregue a um país “onde seu direito à vida ou à liberdade pessoal esteja em risco de violação” em razão de suas opiniões políticas. A deportação ocorreu depois que Fidel Castro rotulou os pugilistas de traidores da pátria. Agora se conhece a razão de Tarso: ele não liga muito para os tratados entre democracias, mas respeita a “legalidade”, a “estrutura jurídica”, das ditaduras.
A régua moral de Tarso é, antes de tudo, imoral. A sua pretensão de acusar o sargento do porão como criminoso comum, absolvendo a ditadura militar brasileira, significaria torturar a História até virá-la pelo avesso. No ponto de partida dos “processos de Tarso”, o Estado estaria dizendo que a tortura corriqueira de prisioneiros políticos não mantinha relação direta com uma “estrutura jurídica” na qual o direito público à divergência e os direitos privados dos presos haviam sido virtualmente cancelados. De fato, o ministro oferece à ditadura militar a oportunidade de obter um triunfo ideológico póstumo de valor incalculável.
Mas a régua de Tarso está meticulosamente moldada com vista a uma finalidade pragmática. Na Argentina, no Chile e no Uruguai, as leis de anistia dos torturadores sofreram revisões judiciais que abriram caminho para a responsabilização dos “comandantes” e, em certos casos, até dos “presidentes”. Aqui, o ministro pretende promover um número de julgamentos simbólicos de figuras irrelevantes sem atingir o edifício da Lei de Anistia, que consagrou um compromisso indecente entre perseguidores e perseguidos.
Esculpida no apagar das luzes da ditadura e retocada no governo de transição de José Sarney, a Lei de Anistia é um contrato de compra e venda. Os mandantes dos assassinatos e da tortura de Estado compraram a impunidade, pagando-a com recursos públicos, e usufruem hoje a tranqüila aposentadoria dos tiranos. Os perseguidos pelo regime venderam o direito da Nação à memória histórica, que não lhes pertence, em troca de títulos de indenizações pecuniárias cujas cotações são proporcionais à posição e à influência de cada um. Na mesa de operações da bolsa da anistia, um José Dirceu, um Carlos Heitor Cony ou um Ziraldo bem vivos valem dezenas de anônimos assassinados sob tortura.
O contrato funciona eficientemente para os dois lados, à custa da sociedade brasileira, mas experimenta fricções quando suas bases ou seus detalhes sofrem críticas. Nessas horas, emergem os argumentos da delinqüência moral. Os compradores de impunidade ameaçam exigir processos para “os dois lados”, cancelando de passagem o direito à resistência contra a tirania. Não é preciso deixar de deplorar o ato dos seqüestradores de um embaixador, que pretendiam trocar seu cativo por prisioneiros sob tortura, para distingui-lo do ato de uma ditadura que seqüestra militantes políticos e os suplicia. A proposta de equiparação entre esses dois atos evidencia apenas que o Estado dos compradores de impunidade só pode ser anistiado na condição de milícia fora-da-lei.
Os vendedores da memória, por sua vez, almejam conferir aos anistiados o título de heróis da pátria, juntando-os todos num balaio abrangente e desenhando uma auréola de santidade sobre convictos stalinistas que só queriam substituir uma tirania por outra. A operação ideológica, realizada em cerimônias públicas da Comissão de Anistia, é um veículo para legitimar a formação de patrimônios privados a partir das rendas de indenizações.
Uma democracia tem o direito de rever as leis herdadas de uma ditadura e o dever de livrar-se das vendas que a impedem de mirar um passado abominável. Tantos anos depois, uma revisão da Lei de Anistia não poderia abrir caminho para a adequada punição judicial dos “presidentes” e “comandantes” em nome dos quais agiam os torturadores diretos, mas propiciaria, juntamente com a abertura total dos arquivos secretos, uma completa atribuição de responsabilidades históricas. O horizonte do ministro do Arbítrio é bem diverso. Ele quer incrustar na pedra da eternidade a Lei de Anistia, imolando no percurso os mais desavisados entre os anões sádicos dos porões.
Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.
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