A FOME SEGUNDO JOSUÉ
Rosana Magalhães
“A fome se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis do Recife”, escreveu Josué. Ele foi médico, professor, sociólogo e escritor. Se vivo estivesse, completaria 100 anos em setembro. O pernambucano Josué de Castro foi o primeiro pensador a refletir sobre a natureza e a complexidade das diferentes formas de privação alimentar no País. Não por acaso, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão do qual ele é patrono, deslocará sua reunião plenária, em setembro, de Brasília para Recife, cidade onde nasceu Josué – em evento que deverá contar com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
As idéias de Josué, já no início do século passado, uniram os avanços da bioquímica e da fisiologia, ultrapassaram as fronteiras das disciplinas biomédicas e introduziram categorias analíticas ligadas à sociologia, geografia, antropologia e economia. O descompasso entre as condições salariais e as necessidades alimentares dos trabalhadores o motivou a refletir sobre o papel do Estado e das políticas de governo. Ele associou a fome aos dilemas da construção da nação, do Estado e do desenvolvimento econômico e social.
Hoje, 100 anos depois do nascimento e 35 anos após sua morte, a miséria e a pobreza apresentam novos contornos, novas perspectivas de intervenção pública. A fome continua tema prioritário e exigência política no Brasil, que ainda não conseguiu erradicar a indigência (a incapacidade de obter a renda necessária para a garantir a mera sobrevivência física).
Hoje, no entanto, diferentemente da realidade dos anos 30, 40 e 50, analisados por ele, o quadro de miséria e fome tornou-se mais complexo, mais urbano e segmentado – a partir das clivagens de gênero, etnia, escolaridade e inserção ocupacional. À medida que o Brasil exibe recordes de produção agrícola e um PIB per capita que o insere entre os países mais ricos do mundo, nossos maiores limites para equacionar a fome estão ligados à questão das prerrogativas e dos direitos de cidadania. Ainda assim, ao formular um conceito de desenvolvimento que não é puramente econômico, mas que remete aos dilemas da integração e a emancipação humana, a obra mantém uma proximidade inquestionável com o debate atual em torno das políticas sociais e da cidadania. Estar bem nutrido para Josué de Castro é, antes de mais nada, uma exigência ética.
Sobre as opções políticas para a solução da fome e da miséria, Josué também nos ensinou a recusar o assistencialismo e a fragmentação das ações e evitar a perpetuação de programas setoriais que não buscam a convergência em torno de resultados comuns. Neste sentido, o esforço de fazer dialogar as diferentes agendas das políticas públicas, possibilitar novos arranjos de governança, incluindo múltiplos atores, instituições e grupos sociais em torno da questão da segurança alimentar, atualiza e expande a obra e o pensamento de Josué de Castro.
» Rosana Magalhães, nutricionista, é pesquisadora titular da Fundação Oswaldo Cruz.
Rosana Magalhães
“A fome se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis do Recife”, escreveu Josué. Ele foi médico, professor, sociólogo e escritor. Se vivo estivesse, completaria 100 anos em setembro. O pernambucano Josué de Castro foi o primeiro pensador a refletir sobre a natureza e a complexidade das diferentes formas de privação alimentar no País. Não por acaso, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão do qual ele é patrono, deslocará sua reunião plenária, em setembro, de Brasília para Recife, cidade onde nasceu Josué – em evento que deverá contar com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
As idéias de Josué, já no início do século passado, uniram os avanços da bioquímica e da fisiologia, ultrapassaram as fronteiras das disciplinas biomédicas e introduziram categorias analíticas ligadas à sociologia, geografia, antropologia e economia. O descompasso entre as condições salariais e as necessidades alimentares dos trabalhadores o motivou a refletir sobre o papel do Estado e das políticas de governo. Ele associou a fome aos dilemas da construção da nação, do Estado e do desenvolvimento econômico e social.
Hoje, 100 anos depois do nascimento e 35 anos após sua morte, a miséria e a pobreza apresentam novos contornos, novas perspectivas de intervenção pública. A fome continua tema prioritário e exigência política no Brasil, que ainda não conseguiu erradicar a indigência (a incapacidade de obter a renda necessária para a garantir a mera sobrevivência física).
Hoje, no entanto, diferentemente da realidade dos anos 30, 40 e 50, analisados por ele, o quadro de miséria e fome tornou-se mais complexo, mais urbano e segmentado – a partir das clivagens de gênero, etnia, escolaridade e inserção ocupacional. À medida que o Brasil exibe recordes de produção agrícola e um PIB per capita que o insere entre os países mais ricos do mundo, nossos maiores limites para equacionar a fome estão ligados à questão das prerrogativas e dos direitos de cidadania. Ainda assim, ao formular um conceito de desenvolvimento que não é puramente econômico, mas que remete aos dilemas da integração e a emancipação humana, a obra mantém uma proximidade inquestionável com o debate atual em torno das políticas sociais e da cidadania. Estar bem nutrido para Josué de Castro é, antes de mais nada, uma exigência ética.
Sobre as opções políticas para a solução da fome e da miséria, Josué também nos ensinou a recusar o assistencialismo e a fragmentação das ações e evitar a perpetuação de programas setoriais que não buscam a convergência em torno de resultados comuns. Neste sentido, o esforço de fazer dialogar as diferentes agendas das políticas públicas, possibilitar novos arranjos de governança, incluindo múltiplos atores, instituições e grupos sociais em torno da questão da segurança alimentar, atualiza e expande a obra e o pensamento de Josué de Castro.
» Rosana Magalhães, nutricionista, é pesquisadora titular da Fundação Oswaldo Cruz.
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