segunda-feira, 7 de julho de 2025

Os vários riscos da retórica do ‘nós contra eles’ - Sergio Lamucci

Valor Econômico

Estratégia pode dificultar o avanço da agenda da equipe econômica no parlamento, além de piorar a qualidade do debate sobre política fiscal e sobre a agenda para reduzir a injustiça tributária

Nos últimos dias, o governo e o PT entraram pesado na campanha do “nós contra eles”, martelando a ideia de que promovem medidas em defesa dos mais pobres, enquanto sofreriam a oposição do Congresso e dos mais ricos. Esse maniqueísmo acirrou os ânimos com deputados e senadores, o que pode dificultar o avanço da agenda da equipe econômica no parlamento, além de piorar a qualidade do debate sobre política fiscal e sobre a agenda para reduzir a injustiça tributária no país, num momento em que as incertezas sobre as contas públicas continuam elevadas.

A estratégia usa argumentos falaciosos, a começar por incluir o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), derrubado por deputados e senadores, como uma medida que atingiria principalmente os mais ricos. Como a elevação do IOF encarece o crédito, ela pesa mais sobre os mais pobres, mais endividados do que a parcela da população de renda elevada.

O governo aumentou o tributo porque precisava elevar a arrecadação rapidamente, devido às dificuldades para cumprir as metas do arcabouço fiscal. Mesmo congelando R$ 31 bilhões de gastos do orçamento deste ano, o IOF foi elevado para garantir uma receita extra de R$ 20,5 bilhões em 2025 e R$ 41 bilhões em 2026. Diante da má repercussão, voltou atrás em parte da alta do tributo no mesmo dia do anúncio da medida, em 22 de maio, revogando o aumento sobre a aplicação de fundos brasileiros no exterior e de remessas de investidores pessoas físicas para fora do país. O governo também recuou em mais alguns itens em junho, diminuindo a taxa sobre as operações de risco sacado, que envolvem antecipação de recursos a fornecedores. Na sexta-feira, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu os efeitos dos decretos de Lula e do Congresso sobre o IOF, convocando uma audiência de conciliação em 15 de julho.

Para compensar a perda de arrecadação com os recuos sobre o tributo, a equipe econômica propôs medidas como o fim da isenção de títulos incentivados, como LCIs, LCAs, CRIs e CRAs (voltados para o agronegócio e o setor imobiliário) e debêntures de infraestrutura, a partir de 2026. Taxar esses papéis incentivados faz sentido, ainda que seja discutível no caso das debêntures de infraestrutura. A isenção de Imposto de Renda (IR) levou a emissão desses papéis a dar um salto enorme, de R$ 436,8 bilhões em janeiro de 2020 para R$ 1,981 trilhão em maio deste ano. A alíquota estabelecida, de 5%, ainda é bem inferior aos 17,5% definidos para a tributação das outras aplicações financeiras, e o estoque de quase R$ 2 trilhões não foi taxado. A medida, desse modo, corrige uma distorção, que implica uma renúncia fiscal de cerca de R$ 40 bilhões, nas contas do Ministério da Fazenda, que vê ainda uma canibalização dos títulos públicos pelos papéis incentivados, reduzindo a participação dos prefixados na dívida pública.

A maior parte desses papéis fica nas mãos de grandes investidores, mas aplicadores de pequeno porte também detêm esses títulos, recomendados por qualquer gerente de banco para clientes do varejo. Não é o caso de isentá-los na compra de LCIs ou LCAs; o ponto é que é uma caricatura classificar todos os investidores que compram esses papéis como super-ricos, como a retórica do “nós contra eles” faz soar.

Da agenda do governo, a medida que procura mais diretamente promover a justiça tributária é a proposta de isenção de IR para quem ganha até R$ 5 mil por mês e o desconto para quem recebe entre esse valor e R$ 7 mil. A iniciativa deve gerar um renúncia fiscal de cerca de R$ 25 bilhões por ano, a ser compensada com uma tributação mínima de quem tem renda de R$ 600 mil por ano ou mais, entrando nesse cálculo o recebimento de dividendos, hoje isentos. Reduzir a regressividade do sistema tributário é uma medida necessária e bem-vinda. A questão é como isso será feito. Dado o nível de rendimento médio do trabalho no Brasil, de menos de R$ 3.500 por mês, o limite de isenção de R$ 5 mil parece elevado.

Além disso, há dúvidas sobre algumas medidas de tributação mínima dos mais ricos. Talvez fosse mais simples reinstituir, de um lado, a taxação sobre os dividendos da pessoa física, ao mesmo tempo em que se reduziria, de outro, a alíquota do imposto sobre os lucros das empresas, que chegam a 34% no caso das empresas não financeiras, bem mais alta que a média internacional. Nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a taxa fica perto de 24%.

A proposta do governo busca contemplar esse ponto, mas pode haver complicações na implementação da medida, dadas as suas características. Pelo projeto enviado ao Congresso, a combinação da tributação efetiva da empresa e da taxação dos dividendos recebidos pela pessoa física não pode superar os 34%; se isso ocorrer, o contribuinte terá a restituição da diferença na declaração anual de IR. É um mecanismo que parece complexo. Não é simples, por exemplo, calcular a carga efetiva sobre as companhias. Além disso, a proposta do governo não mexe diretamente nas brechas dos regimes especiais como o Simples e o Lucro Presumido, que permitem a pessoas físicas com rendimentos muito altos pagarem pouco imposto.

Como se vê, é um tema técnico, de grande complexidade, cuja tramitação no Congresso não será simples. É necessário que as medidas sejam bem desenhadas e bem negociadas. Nesse cenário, a campanha do governo do “nós contra eles” tende a dificultar o que já não será fácil. O risco é não se promover justiça tributária e não se compensar devidamente a perda de receita que haverá com a ampliação da isenção do IR - além de piorar a crise entre os Poderes.

 

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