Valor Econômico
O futuro promete solavancos e colisões nas
relações comerciais e financeiras entre as nações
As vítimas do tarifaço de Donald Trump buscam
encontrar formas de resistir aos danos que seriam causados pela intempérie tarifária.
Entre os esforços cogitados pelos países atingidos sobressaem os projetos para
restaurar o multilateralismo nas relações comerciais e financeiras.
O imediatismo que impera no debate das redes
sociais pretende assegurar o caráter inédito dos incômodos causados pelo
tarifaço do Agente Laranja.
Suspeito que a história das relações econômicas e políticas internacionais não assegura tal ineditismo. Peço licença ao leitor do nosso Valor para perpetrar a ousadia de considerar a sucessão de episódios conflitivos, uma reiteração do aparente paradoxo que afirma: “são diferentes, mas semelhantes”.
É de bom alvitre relembrar que a “disciplina”
imposta às economias no pós-Guerra nasceu da trágica experiência do tumultuado
período encravado entre as duas guerras mundiais, os anos 20 e 30. Este
intervalo histórico foi marcado por instabilidades monetárias e cambiais
avassaladoras, transmissão de tensões por meio dos circuitos financeiros
internacionais, disputas comerciais, desemprego em alta. Tudo isso culminou na
Grande Depressão, iniciada em 1929, e na violência do nazifascismo que não foi
outra coisa senão a vingança brutal da política contra as peripécias cegas do
mercado. Tudo isso fez surgir o convencimento de que o capitalismo, entregue à
sua própria lógica, era uma ameaça à vida civilizada.
Para quem, no entanto, se apega às ilusões do
iluminismo bastardo, hoje tão em voga, e vê a humanidade condenada
inexoravelmente ao progresso, não pode ser mais desprezível e ridícula a ideia
de que o passado possa rondar sinistramente o futuro do presente.
A experiência negativa dos anos 20 e 30
deixou uma lição: o capitalismo apresenta uma estrutura e uma dinâmica que, em
seu movimento, incita as sociedades ao limiar de aventuras protecionistas. É
necessário relembrar o projeto socioeconômico gestado na posteridade da Grande
Depressão e da Segunda Guerra. As dores e sofrimentos dos anos 20 e 30
receberam os tratamentos adequados. Os remédios promoveram a constituição de
uma instância pública destinada a coordenar e disciplinar a concorrência entre
as nações.
Para evitar a repetição do desastre era
necessário, antes de tudo, constituir uma ordem econômica internacional capaz
de alentar o desenvolvimento do comércio entre as nações, dentro de regras
monetárias que garantissem a confiança na moeda-reserva, o ajustamento não
deflacionário do balanço de pagamentos e o abastecimento de liquidez requerido
pelas transações em expansão. Tratava-se de erigir um ambiente econômico
internacional destinado a propiciar um amplo raio de manobra para as políticas
nacionais de desenvolvimento, industrialização e progresso social.
Nos trabalhos elaborados para as reuniões que
precederam as reformas de Bretton Woods em julho de 1944, John Maynard Keynes
formulou a proposta mais avançada e internacionalista de gestão da moeda
internacional. Baseado nas regras de administração da moeda bancária, o Plano
Keynes previa a constituição de uma entidade pública e supranacional
encarregada de controlar o sistema internacional de pagamentos e de provimento
de liquidez aos países deficitários. Tratava-se não só de contornar o
inconveniente de submeter o dinheiro universal às políticas econômicas do país
emissor, como observamos agora, mas de evitar que a moeda internacional
assumisse a função de perigoso agente da “fuga para a liquidez”.
As transações comerciais e financeiras seriam
denominadas em bancor e liquidadas nos livros da instituição monetária
internacional, a Clearing Union. Os déficits e superávits seriam registrados em
uma conta corrente que os países manteriam na Clearing Union. No novo arranjo
institucional, tanto os países superavitários quanto os deficitários estariam
obrigados, mediante condicionalidades, a reequilibrar suas posições, o que
distribuiria o ônus do ajustamento de forma mais equânime entre os participantes
do comércio internacional. No Plano Keynes, não haveria lugar para a livre
movimentação de capitais em busca de arbitragem ou de ganhos especulativos.
Em 1944, nos salões do hotel Mount
Washington, na acanhada Bretton Woods, a utopia monetária de Keynes capitulou
diante da afirmação da hegemonia americana que impôs o dólar, ancorado no ouro,
como moeda universal. O conflito que hoje nos aflige exprime o inconformismo de
muitos americanos com o declínio de sua hegemonia.
A pretendida e nunca executada reforma do
sistema monetário internacional, ou coisa assemelhada, não vai enfrentar as
conturbações geradas pela decadência dos EUA. Vai, sim, acertar contas com os
desafios engendrados pelas assimetrias de ajustamento provocadas pelo
desarranjo da economia americana, ancorada na força do dólar e no poder dos
mercados financeiros de Tio Sam.
Impulsionado pela “deslocalização” da grande
empresa dos EUA e ancorado na generosidade da finança privada do país, o
processo de integração produtiva e financeira das últimas duas décadas deixou
como legado a migração da indústria manufatureira para a China “produtivista”.
A interdependência sino-americana não esgota seus efeitos no desequilíbrio
comercial entre os dois países, mas avança suas consequências para países
abrigados nos Brics.
Está claro que os chineses ensaiam cautelosa,
mas firmemente a constituição de um sistema monetário internacional destinado a
ampliar rapidamente os acordos de troca de moedas (swaps) com seus parceiros
comerciais mais importantes.
As trumpadas de Donald Trump visam impedir a
partilha da liderança global com a China. Seja como for, os desencontros e
trombadas globais demonstram que a almejada correção dos chamados
desequilíbrios globais vai exigir regras de ajustamento não compatíveis com o
sistema monetário internacional em sua forma atual, aí incluído o papel do
dólar como moeda reserva. Isso não significa prognosticar a substituição da
moeda americana por outra moeda, seja o euro, seja o yuan, mas constatar que o
futuro promete solavancos e colisões nas relações comerciais e financeiras
entre as nações.
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