terça-feira, 2 de setembro de 2025

Setembro traz primavera quente, por Fernando Gabeira

O Globo

É possível dizer que teremos flores e pólen da estação e, ao mesmo tempo, um julgamento que condenará um ex-presidente

Chegou setembro, que nos traz a primavera e um julgamento histórico com resultado previsível. Nem sempre é assim. As estações do ano se repetem com regularidade, mas a História costuma surpreender.

É possível dizer que teremos flores e pólen da primavera e, ao mesmo tempo, um julgamento que condenará um ex-presidente e alguns altos oficiais por tentativa de golpe de Estado. A maioria esmagadora, talvez a unanimidade, dos observadores conta com a condenação.

Pela primeira vez na História recente do Brasil, uma tentativa de golpe será punida. Mas, também pela primeira vez, ela nunca teve respaldo tão militante e articulado. Igualmente de forma inédita, um presidente dos Estados Unidos se coloca claramente contra o júri e pede o fim do processo. Daí a imprevisibilidade das consequências.

Diante dessas circunstâncias, suponho que as relações entre Brasil e Estados Unidos não melhorem no curto prazo. Continuaremos a falar de soberania, os ministros usarão o boné azul dizendo que o Brasil é dos brasileiros, e nas praças cantaremos “ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil”.

Apesar do aspecto simbólico e um pouco nostálgico de tudo isso, a gente precisa pôr a cabeça para funcionar, pois o tema soberania pode animar a campanha de 2026, no bom sentido. Pode inspirar um debate sobre programa de governo.

Há lacunas na soberania que estão na cara, como a ocupação de grande parte da cidade do Rio por grupos criminosos. O controle do território e das fronteiras é uma espécie de beabá da soberania. Nossa dependência de remédios e equipamentos durante a pandemia revela outra lacuna. Mas os elementos modernos da soberania dependem de conhecimentos políticos e técnicos.

O imperialismo do passado se baseava em estradas de ferro e construção de fábricas. Hoje ele é digital. As big techs, com seus algoritmos, moldam opiniões, realizam seus lucros, acumulam montanhas de dados sobre nosso cotidiano.

Recentemente, circulou a notícia de que Trump proibiria a exportação de chips ao Brasil. Foi desmentida. Se verdadeira, atrasaria o projeto brasileiro de inteligência artificial e nossos data centers soberanos. E custaria bem mais caro na mão dos chineses.

Tenho escrito sobre dependência digital. Falo da necessidade de satélites, internet de alta velocidade, cabos, gente especializada. Temos muitas vantagens: água, matas, minerais raros. Por esse lado, também é preciso pensar a soberania. Nem todas as jazidas brasileiras são conhecidas. Terras-raras já são exploradas em Goiás, por um grupo americano. Um projeto em comum com os Estados Unidos, segundo o New York Times, estava em discussão; até que veio o tarifaço.

Como será nossa política sobre minerais estratégicos? Que nível de independência digital podemos alcançar? São perguntas que precisamos fazer. Pensar no médio e longo prazos é um dos fatores, entre outros, que fortalecem a China. Estamos muito envolvidos nos episódios cotidianos. São eletrizantes, nos ensinam muitas coisas. Mas a verdade é que Donald Trump passará. Lula se prepara para mais uma eleição, um novo mandato até 2030. Se não for pressionado a dar um conteúdo objetivo ao conceito de soberania, corre o risco de ficar na propaganda. O que tem inegável eficácia eleitoral. Mas não resolverá os desafios em que fomos lançados não apenas pelas posições de Trump, mas também porque ele próprio já expressa certa decadência americana, o nascimento de um mundo transfigurado.

 

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