O Globo
É possível dizer que teremos flores e pólen
da estação e, ao mesmo tempo, um julgamento que condenará um ex-presidente
Chegou setembro, que nos traz a primavera e
um julgamento histórico com resultado previsível. Nem sempre é assim. As
estações do ano se repetem com regularidade, mas a História costuma
surpreender.
É possível dizer que teremos flores e pólen
da primavera e, ao mesmo tempo, um julgamento que condenará um ex-presidente e
alguns altos oficiais por tentativa de golpe de Estado. A maioria esmagadora,
talvez a unanimidade, dos observadores conta com a condenação.
Pela primeira vez na História recente do Brasil, uma tentativa de golpe será punida. Mas, também pela primeira vez, ela nunca teve respaldo tão militante e articulado. Igualmente de forma inédita, um presidente dos Estados Unidos se coloca claramente contra o júri e pede o fim do processo. Daí a imprevisibilidade das consequências.
Diante dessas circunstâncias, suponho que as
relações entre Brasil e Estados Unidos não melhorem no curto prazo.
Continuaremos a falar de soberania, os ministros usarão o boné azul dizendo que
o Brasil é dos brasileiros, e nas praças cantaremos “ou ficar a pátria livre,
ou morrer pelo Brasil”.
Apesar do aspecto simbólico e um pouco
nostálgico de tudo isso, a gente precisa pôr a cabeça para funcionar, pois o
tema soberania pode animar a campanha de 2026, no bom sentido. Pode inspirar um
debate sobre programa de governo.
Há lacunas na soberania que estão na cara,
como a ocupação de grande parte da cidade do Rio por grupos criminosos. O
controle do território e das fronteiras é uma espécie de beabá da soberania.
Nossa dependência de remédios e equipamentos durante a pandemia revela outra
lacuna. Mas os elementos modernos da soberania dependem de conhecimentos
políticos e técnicos.
O imperialismo do passado se baseava em
estradas de ferro e construção de fábricas. Hoje ele é digital. As big techs,
com seus algoritmos, moldam opiniões, realizam seus lucros, acumulam montanhas
de dados sobre nosso cotidiano.
Recentemente, circulou a notícia de que Trump
proibiria a exportação de chips ao Brasil. Foi desmentida. Se verdadeira,
atrasaria o projeto brasileiro de inteligência artificial e nossos data centers
soberanos. E custaria bem mais caro na mão dos chineses.
Tenho escrito sobre dependência digital. Falo
da necessidade de satélites, internet de alta velocidade, cabos, gente
especializada. Temos muitas vantagens: água, matas, minerais raros. Por esse
lado, também é preciso pensar a soberania. Nem todas as jazidas brasileiras são
conhecidas. Terras-raras já são exploradas em Goiás, por um grupo
americano. Um projeto em comum com os Estados Unidos, segundo o New York Times,
estava em discussão; até que veio o tarifaço.
Como será nossa política sobre minerais
estratégicos? Que nível de independência digital podemos alcançar? São perguntas
que precisamos fazer. Pensar no médio e longo prazos é um dos fatores, entre
outros, que fortalecem a China. Estamos muito
envolvidos nos episódios cotidianos. São eletrizantes, nos ensinam muitas
coisas. Mas a verdade é que Donald Trump passará. Lula se
prepara para mais uma eleição, um novo mandato até 2030. Se não for pressionado
a dar um conteúdo objetivo ao conceito de soberania, corre o risco de ficar na
propaganda. O que tem inegável eficácia eleitoral. Mas não resolverá os
desafios em que fomos lançados não apenas pelas posições de Trump, mas também
porque ele próprio já expressa certa decadência americana, o nascimento de um
mundo transfigurado.
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