Folha de S. Paulo
Avanços de cidadania e redução da
desigualdade não podem ser feitos mais tarde, mas quando oportunidade aparece;
foco deveria ser a justiça tributária
"Fazer o
bolo crescer para depois dividi-lo." A frase, atribuída a Delfim
Netto, ministro da Fazenda entre 1967 e 1974, tornou-se um marco no debate
econômico brasileiro.
A ideia era simples: gerar riqueza e expandir a economia antes de implementar políticas redistributivas —sob o risco de que estas prejudicassem o crescimento. Na prática, serviu de justificativa para arrocho salarial e repressão a movimentos trabalhistas. Entre os mais bem-intencionados, havia a esperança de que o crescimento por si só traria uma melhora posterior na distribuição de renda.
Durante o "milagre
econômico" (1968-73), o PIB cresceu,
em média, 10% ao ano. Mas a promessa de dividir o bolo nunca se cumpriu. Pelo
contrário: a desigualdade aumentou, e a crise dos anos 1980 —parte fruto do
endividamento externo excessivo que permitiu o milagre— corroeu os ganhos. A
lição histórica é clara: adiar a redução da desigualdade tende a torná-la mais
difícil no futuro, pois a concentração
de renda se cristaliza.
Hoje, ressurge uma versão moderna desse
pensamento. Parte-se do diagnóstico de que o problema central do país é o gasto
excessivo do Executivo, sobretudo obrigatório, que cresceria mais rápido que a
receita, inviabilizando o equilíbrio fiscal de longo prazo. Daí deriva-se a
solução única e definitiva: 1 - desvincular pisos de saúde e educação da
arrecadação; 2 - desvincular benefícios sociais do salário
mínimo; e 3 - reduzir o crescimento do próprio mínimo.
Essas propostas têm algo em comum: atingem
mais os mais pobres. Estudos mostram que a valorização do salário mínimo
foi o principal motor da redução da pobreza nos anos 2000. Também não há
evidência de que o Brasil gaste demais com saúde e educação. Em 2019, o país
gastou 3,9% do PIB com saúde pública, menos do que os 6% recomendados pela
Opas/OMS (Organização Pan-Americana da Saúde)/Organização Mundial da Saúde) e
os 6,1% investidos pelos países da OCDE. Em educação, o gasto como proporção do
PIB é semelhante ao dos países da OCDE, mas o valor por aluno é menos da
metade, apesar do déficit histórico na área.
Outra agenda é possível. O foco deveria ser
a justiça
tributária, com maior progressividade no IRPF (Imposto sobre a Renda da
Pessoa Física). O projeto de lei 1.087/2025, do governo federal, avança
nessa direção, mas a alíquota mínima para os super-ricos poderia ser mais
alta do que os 10% propostos, permitindo gerar receita extra para reduzir
impostos sobre consumo —uma dupla melhora no sistema.
Vale lembrar que ricos brasileiros pagam
menos impostos do que a classe média e seus pares em outros países, de forma
que há espaço para taxar, de forma justa, poucos e reduzir os impostos de
muitos.
Também é preciso cortar gastos tributários,
isto é, impostos que o governo deixa de cobrar de algumas firmas e setores, que
saltaram de 1,2% do PIB em 2002 para quase 5% hoje, e reduzir emendas
parlamentares, que passaram de 3,9% das despesas discricionárias em 2014 para
20% em 2024.
Essas medidas reduziriam desigualdades e
garantiriam solidez fiscal ao Estado brasileiro por muitos anos. Isso não
significa que, no longo prazo, não se possa discutir novas regras de
crescimento do salário mínimo e vinculação de gastos sociais. O que não se pode
aceitar é apresentá-las como o único caminho e, pior, antecipar medidas que
repetem a velha promessa de "primeiro crescer, depois dividir" —e
que, na verdade, não farão nem um nem outro.
Como lembra Elio Gaspari, no
século 19 todos no Brasil eram a favor da abolição —"desde
que" viessem compensações aos escravistas, abrigos para libertos idosos, e
assim por diante. A fachada das soluções definitivas costuma encobrir o óbvio:
avanços de cidadania e redução da desigualdade devem ser feitos quando a
oportunidade aparece. O "depois" quase nunca chega.
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