terça-feira, 2 de setembro de 2025

A versão moderna de 'crescer o bolo para depois dividir', por Guilherme Klein Martins

Folha de S. Paulo

Avanços de cidadania e redução da desigualdade não podem ser feitos mais tarde, mas quando oportunidade aparece; foco deveria ser a justiça tributária

"Fazer o bolo crescer para depois dividi-lo." A frase, atribuída a Delfim Netto, ministro da Fazenda entre 1967 e 1974, tornou-se um marco no debate econômico brasileiro.

A ideia era simples: gerar riqueza e expandir a economia antes de implementar políticas redistributivas —sob o risco de que estas prejudicassem o crescimento. Na prática, serviu de justificativa para arrocho salarial e repressão a movimentos trabalhistas. Entre os mais bem-intencionados, havia a esperança de que o crescimento por si só traria uma melhora posterior na distribuição de renda.

Durante o "milagre econômico" (1968-73), o PIB cresceu, em média, 10% ao ano. Mas a promessa de dividir o bolo nunca se cumpriu. Pelo contrário: a desigualdade aumentou, e a crise dos anos 1980 —parte fruto do endividamento externo excessivo que permitiu o milagre— corroeu os ganhos. A lição histórica é clara: adiar a redução da desigualdade tende a torná-la mais difícil no futuro, pois a concentração de renda se cristaliza.

Hoje, ressurge uma versão moderna desse pensamento. Parte-se do diagnóstico de que o problema central do país é o gasto excessivo do Executivo, sobretudo obrigatório, que cresceria mais rápido que a receita, inviabilizando o equilíbrio fiscal de longo prazo. Daí deriva-se a solução única e definitiva: 1 - desvincular pisos de saúde e educação da arrecadação; 2 - desvincular benefícios sociais do salário mínimo; e 3 - reduzir o crescimento do próprio mínimo.

Essas propostas têm algo em comum: atingem mais os mais pobres. Estudos mostram que a valorização do salário mínimo foi o principal motor da redução da pobreza nos anos 2000. Também não há evidência de que o Brasil gaste demais com saúde e educação. Em 2019, o país gastou 3,9% do PIB com saúde pública, menos do que os 6% recomendados pela Opas/OMS (Organização Pan-Americana da Saúde)/Organização Mundial da Saúde) e os 6,1% investidos pelos países da OCDE. Em educação, o gasto como proporção do PIB é semelhante ao dos países da OCDE, mas o valor por aluno é menos da metade, apesar do déficit histórico na área.

Outra agenda é possível. O foco deveria ser a justiça tributária, com maior progressividade no IRPF (Imposto sobre a Renda da Pessoa Física). O projeto de lei 1.087/2025, do governo federal, avança nessa direção, mas a alíquota mínima para os super-ricos poderia ser mais alta do que os 10% propostos, permitindo gerar receita extra para reduzir impostos sobre consumo —uma dupla melhora no sistema.

Vale lembrar que ricos brasileiros pagam menos impostos do que a classe média e seus pares em outros países, de forma que há espaço para taxar, de forma justa, poucos e reduzir os impostos de muitos.

Também é preciso cortar gastos tributários, isto é, impostos que o governo deixa de cobrar de algumas firmas e setores, que saltaram de 1,2% do PIB em 2002 para quase 5% hoje, e reduzir emendas parlamentares, que passaram de 3,9% das despesas discricionárias em 2014 para 20% em 2024.

Essas medidas reduziriam desigualdades e garantiriam solidez fiscal ao Estado brasileiro por muitos anos. Isso não significa que, no longo prazo, não se possa discutir novas regras de crescimento do salário mínimo e vinculação de gastos sociais. O que não se pode aceitar é apresentá-las como o único caminho e, pior, antecipar medidas que repetem a velha promessa de "primeiro crescer, depois dividir" —e que, na verdade, não farão nem um nem outro.

Como lembra Elio Gaspari, no século 19 todos no Brasil eram a favor da abolição —"desde que" viessem compensações aos escravistas, abrigos para libertos idosos, e assim por diante. A fachada das soluções definitivas costuma encobrir o óbvio: avanços de cidadania e redução da desigualdade devem ser feitos quando a oportunidade aparece. O "depois" quase nunca chega.

 

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