sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Infâmia

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. Uma das questões mais emblemáticas da mudança de comando no governo dos Estados Unidos, o fechamento da prisão de Guantánamo e o fim da tortura como método oficial de interrogatório a presos da guerra ao terror, tornou-se ponto central da discussão política nos últimos dias, com a divulgação de um documento de uma comissão do Senado americano. O documento contém acusações frontais de que o desrespeito à Convenção de Genebra foi aprovado pelo presidente George W. Bush, e a autorização para que técnicas de afogamento fossem usadas nas prisões de Guantánamo e Abu-Grahbi partiram diretamente do ex-secretário de Defesa Donald Rumsfeld.

Ao mesmo tempo em que o relatório foi divulgado, dois outros posicionamentos vieram a público. O presidente eleito, Barack Obama, reafirmou a disposição de fechar Guantánamo e proibir a tortura, enquanto o vice-presidente Dick Cheney defendeu em um programa de televisão a tortura como maneira eficiente e rápida na luta contra o terrorismo.

Também o presidente Bush, em outra das muitas entrevistas que vem dando, tentando reescrever uma história que tudo indica será desfavorável ao seu período de governo, disse que o fato de não ter havido mais nenhum ataque terrorista ao território americano desde 2001 é prova de que o país está mais seguro e que a política antiterror de seu governo está correta.

Assim como o presidente Bush - e durante a campanha presidencial, também a candidata republicana, a vice Sarah Palin - avocou a si em diversas ocasiões a representação da vontade divina na luta contra o terror, o presidente eleito Barack Obama declara-se admirador do teólogo protestante Reinhold Niebuhr, um de seus "filósofos favoritos".

Considerado um dos mais importantes intelectuais religiosos, ligado ao grupo evangélico Igreja Unida de Cristo, ensinou durante mais de três décadas em um seminário em Nova York e hoje é nome de rua na cidade.

Fundador de um grupo anticomunista chamado Ação Democrática de Americanos, ele apoiou a intervenção dos EUA na Segunda Guerra Mundial, condenou o bombardeio sobre Hiroshima e Nagasaki, mas depois admitiu que a ação fora necessária para conter a União Soviética.

Niebuhr foi um ativista contra a atuação americana no Vietnã. Seu "realismo cristão" o levava a reconhecer o que chamava de "a persistência do pecado" e criticava quem "usava o mal para evitar o mal maior". Para Obama, lendo Niebuhr, aprende-se que, se é verdade que o mal está sempre presente, sua persistência não pode servir de desculpa para não agir.

Em comentários que parecem dirigidos a Bush, Niebuhr dizia que "pretender interpretar a vontade de Deus é presunção". E advertia que "causas nobres provocaram conseqüências cegas e resultados moralmente problemáticos".

É o que o relatório do comitê bipartidário sobre assuntos militares do Senado confirma, afirmando que os abusos aos direitos humanos dos prisioneiros em Guantánamo, Abu-Ghraib, no Afeganistão e nas prisões secretas da CIA foram diretamente decididos pela alta cúpula do governo, a começar pelo ex-secretário de Defesa Rumsfeld.

As técnicas de interrogatórios utilizadas teriam sido ensinadas por agentes chineses durante a Guerra da Coréia, e foram utilizadas pela primeira vez de maneira sistemática e oficial, pelo menos até 2004. Nesse ponto, o relatório ajuda o presidente eleito Obama, que escolheu para permanecer no cargo o atual secretário de Defesa Roberto Gates, que assumiu em lugar de Rumsfeld no segundo mandato.

Toda essa operação já havia sido denunciada em um livro que foi escolhido pela "New York Times Book Review" como um dos dez melhores do ano. "The Dark Side" ("O lado escuro") da jornalista Jane Mayer da "New Yorker", já foi citado aqui na coluna quando de seu lançamento e é realmente formidável trabalho de investigação jornalística, agora confirmado pelo relatório do Senado.

Ele conta como a guerra ao terrorismo se voltou contra os próprios ideais democráticos dos Estados Unidos. A tortura como tática de obtenção de informações mais rápidas que ajudassem no trabalho de inteligência militar, defendida estes dias por Cheney.

O livro ressalta que somente em junho de 2004, por decisões da Suprema Corte, a lei americana passou a ser válida também para o território de Guantánamo, e os prisioneiros passaram a ter o direito de serem representados por advogados diante de um "julgador neutro".

O livro de Jane Mayer tem uma passagem que mostra bem como a distorção das palavras pode ser a base de uma ação do governo para se defender, confirmada pelo relatório do Senado. E a que ponto de esquizofrenia chegaram algumas autoridades ligadas diretamente à Casa Branca

Ao assumir o posto de principal conselheiro legal do presidente no Office of Legal Counsel, o segundo cargo na hierarquia do Ministério da Justiça dos Estados Unidos, o jovem advogado Dan Levin foi obrigado a justificar legalmente os interrogatórios, descaracterizando a tortura.

Um documento anterior ampliara tanto o conceito de tortura que a legitimara, tornando-se um escândalo. Procurava-se agora um trabalho mais "profissional". Levin se dedicou a tentar encontrar nuances semânticas entre palavras como "dor"ou "sofrimento", para definir até onde os interrogatórios poderiam ir.

E, numa atitude extrema, decidiu se submeter aos mesmos tratamentos dados aos presos de Guantánamo, para avaliar na própria pele até onde poderia chegar "o sofrimento" humano.

Agora, o futuro ministro da Justiça, Eric Holder, terá pela frente a delicada tarefa de desmontar toda a parafernália jurídica criada no governo Bush para justificar os abusos aos direitos humanos, e decidir se processa criminalmente as autoridades que comandaram essa situação infamante na maior democracia do mundo.

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