- O Estado de S.Paulo
A Reforma não se conteve nas 95 teses espetadas à porta da igreja do castelo de Wittenberg em 1517; ela também se refletiu na formação do Brasil
O homem é dotado de livre-arbítrio, mas nem tanto. A vida ensina que a liberdade é mais questão de tamanho da gaiola.
Desde quando começou a ter consciência de si mesmo e de suas limitações, o ser humano se pergunta até que ponto suas ações são comandadas pelos deuses, pela força do destino, pelos astros ou, quem sabe, por alguma energia desconhecida. E até que ponto pode escolher livremente seu caminho, agir ou deixar de agir, para o bem ou para o mal, não importando aqui o que isso signifique.
Nem com sua grande sagacidade o herói Édipo conseguiu fugir do que já havia sido manifestado pelo oráculo. Até mesmo seus pés tortos haviam sido predeterminados pela sua origem e pelo entorno. “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella, no me salvo yo” – lembrou-nos Ortega y Gasset, nas Meditaciones del Quijote.
Sempre é tempo para essas considerações, especialmente nos 500 anos da Reforma Protestante, que teve como um dos seus motes principais o princípio de que o ser humano tem pouco a fazer para obter a salvação, uma vez que sua vida cumpre o que já estiver predestinado pela Providência. Como a graça provê o principal, pode se dedicar, sem intermediários, a procurar a verdade, a construir o mundo e a criar riquezas, pregava Martinho Lutero. Um dos grandes legados da Reforma foi a alfabetização das massas, na medida em que colocava as Escrituras ao alcance e à interpretação de qualquer um.
Algumas considerações publicadas na imprensa brasileira sobre esses 500 anos sugerem que a Reforma Protestante teve baixo impacto sobre a formação do nosso povo e da nossa cultura. É grave equívoco.
O principal impacto pode ser mais bem avaliado de maneira negativa. Enquanto as colônias da Inglaterra e da Holanda nas Américas foram plasmadas pela ética protestante e pelo espírito da Reforma, as colônias de Portugal e Espanha foram construídas pelas doutrinas da Contrarreforma e do Concílio de Trento (1545 a 1563).
Essa diferença explica muita coisa. Enquanto as colônias informadas pela Reforma tiveram mais condições para prosperar, construíram nova ética do trabalho, cujo fruto passou a ser apropriado em consequência do mérito e não das concessões do rei, as colônias ibéricas, Nova Espanha e Brasil, foram conduzidas à Inquisição e à retranca, e até hoje continuam paralisadas pelo patrimonialismo, pelo nepotismo e pela corrupção.
A Reforma não se conteve nas 95 teses que Lutero espetou à porta da igreja do castelo de Wittenberg em 1517, mas foi alavancada pelo pensamento modernizador, que valorizou o ser humano. Começou com o Renascimento, de Erasmo de Roterdã, foi aprofundado por Descartes, Hobbes e pela crítica ao atraso, que culminou no Iluminismo e em Immanuel Kant.
A Contrarreforma caminhou em círculos no âmbito da ortodoxia, da sociedade fechada, das nomeações – que, dependendo da situação do tesouro, podiam ser obtidas a peso de ouro –, das honrarias concedidas pela coroa e por força dos seus monopólios.
Nesse modelo, a sociedade não é um conjunto de indivíduos com autonomia para tomar decisões, construir sua vida, escolher seus dirigentes e criar as bases do estado moderno. Na Contrarreforma, a sociedade é formada por associações de subgrupos hierarquicamente organizados, impostos de cima para baixo, e não o fruto do contrato social.
São três as concepções ocidentais do curso da História. Os evolucionistas e os positivistas a veem como linha reta, com um começo e um fim. Os dialéticos, como ziguezague formado por teses, antíteses e sínteses, que culminarão na grande síntese. Os platônicos a têm como um círculo, onde os grandes movimentos tendem a se repetir, como o curso dos planetas em suas órbitas. Pode-se, ainda, acrescentar a visão dos neoplatônicos, que a veem como trajetória espiralada, talvez como a cornucópia de Hermes.
A Contrarreforma, no entanto, parece ter quebrado essas geometrias: “Nossa história tem sido um processo descontínuo feito de saltos e quedas, às vezes dança, outras, letargias interrompidas por súbito e violento despertar. (...) Nossa hora jamais coincide com a dos outros”, conclui melancolicamente Octavio Paz, em Sóror Juana Inés de la Cruz.
Enfim, cá estamos nós, 500 anos depois, tentando construir o futuro com essa matéria-prima, com essa circunstância, com a liberdade possível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário