Autores escrevem menos com a tecnologia. Eu era criança, ainda em Maceió. Uma negra baixinha e magra, muito velha e carinhosa, de nome Bazinha, costumava me botar pra dormir cantando canções e contando histórias que, para mim, só ela devia conhecer. Numa dessas histórias, Bazinha dizia que o Zumbi dos Palmares ainda estava vivo, escondido nas matas da Serra da Barriga, ali pertinho de Maceió. Ninguém pegava o Zumbi, porque ele sabia voar.
Não preciso explicar a impressão que essa história produzia em mim, nem a importância que ela teve ao longo de minha vida como cidadão e artista brasileiro. O Zumbi se tornou, para mim, um herói a decifrar.
Mais recentemente, comecei a entender melhor a história da Bazinha e por que ela me impressionara tanto. Nenhum inimigo alcançava o Zumbi, porque ele sabia alçar voo acima de suas cabeças, longe da perfídia de suas armas vulgares, aquelas que só podem ferir quem não é capaz de deixar o duro chão do que costumamos chamar de realidade. O Zumbi sabia voar.
Contei essa história e suas consequências pessoais na homenagem que me prestaram na Universidade Estadual de Alagoas, a Uneal, onde me outorgaram um título de Doutor Honoris Causa, no momento em que o estado festeja 200 anos de sua emancipação. Disse que, hoje, são os pensadores e os artistas brasileiros que têm a obrigação de aprender a voar.
Estamos vivendo num país que se desmantela política e culturalmente entre ódios falsos e falsas ideias sobre um futuro que já cortejamos tanto. Um futuro que nunca chega e, às vezes, até parece que já passou. Apesar de tudo, durante a ditadura militar, era mais fácil pensar o Brasil daquele momento e escolher um rumo a tomar. Tínhamos quase todos o mesmo horror ao que nos sucedia, ninguém duvidava de que a luta prioritária era contra o autoritarismo, a ausência de liberdade. Da esquerda mais radical ao mais radical liberalismo, ninguém precisava pensar muito para se unir em torno desse projeto de superação da ditadura. Ninguém precisava voar.
Hoje, apesar das causas justas, das justas críticas a governantes e políticos em geral, da indispensável denúncia dos escândalos de corrupção e desgoverno, estamos também usando nossa liberdade para nos autodestruir, mesmo que involuntariamente. Enquanto enfrentamos o que escolhemos por inimigo, atingimos muitas vezes a liberdade de outras pessoas a nosso lado, às quais não damos o direito de pensar diferente de nós, “inimigos” inventados por nossa histeria que devem ser eliminados apenas por não pensarem como nós.
É nosso direito combater as ideias com que não concordamos. Mas nenhum pensamento, mesmo o mais pérfido, merece ser eliminado porque não estamos de acordo com ele. Essa é a única garantia de que vivemos uma cultura democrática.
Precisamos refundar o Brasil já, reinaugurá-lo do ponto de vista cultural, político e institucional, do ponto de vista de sua economia seletiva e da gigantesca desigualdade social em que vivemos. Precisamos dar um fim à tradição da escravidão em nossa história, aos males deixados pelas oligarquias que nos governaram e ainda governam. Dar um fim à dor da fome, toda fome, entre nós.
Essa invenção do Brasil não pode ser construída com um pensamento excludente, que precisa eliminar o seu contrário para existir, que propaga o ódio à diferença. Nós, que somos o resultado de um cadinho de culturas, que somos o único país do mundo originado de uma improvável sopa ibero-afro-indígena, não podemos desprezar nenhuma fonte natural do que somos.
Apesar de toda injustiça cometida ao longo de nossa história, sempre sonhamos com uma cultura mestiça numa sociedade miscigenada, um mito nunca realizado. Mas onde existe um mito, existe necessariamente um projeto, mesmo que seja inconsciente. E esse projeto, de vez em quando, se revela entre nós, como na adoção do samba de origem africana como a música brasileira por excelência ou na eleição romântica do índio como símbolo popular da pátria.
Temos uma vocação evidente para a criação e a poesia, vivendo constrangidos entre a miséria humana e a exuberância da geografia, nessa mistura de exaltação e melancolia que somos nós. Como está em Jorge de Lima, meu poeta favorito: “Debruça-te sobre tua voz e escuta as vozes que vêm nela/ As ressonâncias de ti próprio que nasceram contigo/ Os bramidos dos ventos nas tuas velas rotas”. Confiando em nossas pobres velas rotas, mas firmes e fiéis, aprenderemos a voar como o herói de Bazinha nos Palmares.
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Cacá Diegues é cineasta
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