Só quando lei fosse omissa o juiz deveria decidir de acordo com analogia, costumes e os princípios de direito. Muitas decisões do Supremo já alteraram esse entendimento
Hoje,
será um dia quente no Supremo Tribunal Federal (STF), arrastado para o olho de
um furacão por seus próprios integrantes, não pelo Executivo ou pelo
Legislativo, embora alguns possam atribuir a crise de imagem em que se encontra
à modificação do Código de Processo Penal (CPP), aprovada pelo Congresso, e ao
fato de o presidente Jair Bolsonaro, supostamente, não ter cumprido um acordo
com o Senado para vetá-lo. No juridiquês, trata-se da exegese do artigo 316 do
CPP, que diz, em seu parágrafo único: “Decretada a prisão preventiva, deverá o
órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90
(noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a
prisão ilegal”.
O
ministro Marco Aurélio Mello interpretou ao pé da letra o citado artigo e
mandou soltar o traficante André de Oliveira Macedo, o André do Rap, sem levar
em conta que ele estava condenado a 25 anos de prisão em outros dois processos
e é um dos chefões da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC).
Diante das críticas, disse que processo não tem capa e sustentou sua decisão,
igual a mais de 70 sentenças com a mesma interpretação que já lavrou. O
presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, a pedido do Ministério Público
Federal (MPF), sustou a decisão e pôs a questão na pauta da sessão plenária do
Supremo de hoje. Marco Aurélio estrilou por causa da invertida que levou de
Fux, mas é jogo jogado.
A
Corte terá de firmar uma nova jurisprudência sobre o dispositivo incluído no
Código de Processo Penal durante a aprovação do chamado pacote anticrime, em
dezembro passado. Há dúvidas quanto à eficácia da mudança feita para acelerar
os julgamentos de presos em prisão preventiva sem condenação e reduzir a
população carcerária. Muitos avaliam que o dispositivo beneficia, sobretudo, os
autores de crimes de colarinho-branco, com recursos financeiros para contratar
bons advogados, e grandes criminosos, como chefões do tráfico de drogas e
doleiros. Esse tipo de leitura predomina na opinião pública e pressiona o
Supremo.
No
Congresso Nacional, um grupo de deputados quer revogar o artigo 316 e outro,
tentar garantir a votação da proposta de emenda constitucional (PEC) que
permite a volta da prisão após a condenação em segunda instância. André do Rap
já tem condenação em segunda instância, mas está recorrendo da decisão. O
deputado Alex Manente (Cidadania-SP) negocia com o presidente da Câmara dos
Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a retomada dos trabalhos da comissão que
analisa a PEC da prisão após condenação em segunda instância. Maia criticou a
decisão de Marco Aurélio. Autor do projeto, Manente quer aprovar a PEC ainda
neste ano.
O
modelo Civil Law, adotado pelo Brasil, pertence à grande família
romano-germânica, que valoriza a letra da lei — que surge antes, para regular
as condutas sociais. Na Common Law, de origem anglo-saxã, observado na
Inglaterra, nos Estados Unidos e em outros países de língua inglesa, o direito
é criado não pelo legislador, mas pelos juízes. Seu objetivo é dar solução a um
processo, desta decisão surge o precedente, nos quais se fundamentará a
jurisprudência. Há polêmicas nos dois casos, as principais envolvem a segurança
jurídica e a duração dos processos. Enquanto a lei garante maior confiabilidade
e segurança, a jurisprudência, por meio dos precedentes, agiliza a conclusão
dos processos.
No Brasil, só quando lei fosse omissa o juiz deveria decidir o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Mas isso nem sempre acontece. Muitas decisões do Supremo já alteraram esse entendimento. A polêmica sobre a execução da pena após condenação em segunda instância, por exemplo. O Supremo adotou esse procedimento, contrariando o princípio legal do trânsito em julgado, depois, voltou atrás. Agora, o assunto retorna à pauta no Congresso, para se tornar lei. O choque entre ministros “garantistas” e “punitivistas” tem tudo a ver com essa contradição. Por ironia, o tema da prisão preventiva está sendo revisitado pela Corte no caso de um traficante e não de um colarinho-branco, mas a lei é para todos.
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