segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Quem cala corrompe - José Álvaro Moisés

"Não tenho vergonha de dizer ao povo brasileiro que temos de pedir desculpas. O PT tem de pedir desculpas..." Lula, em 2005

O escândalo do mensalão em 2005 não impediu que Lula da Silva se reelegesse em 2006 com mais de 60% dos votos. Isso sugere algumas possibilidades: a maioria dos eleitores não estava informada dos fatos; informada ou não, a maioria não estava convencida do envolvimento do presidente; ou a maioria, em qualquer caso, não associou o uso indevido de recursos públicos para fins privados - a corrupção - a crimes políticos passíveis de punição, mesmo o voto sendo o instrumento par excellence dos cidadãos para responsabilizar governos. A cultura política dos brasileiros favorece a corrupção?

A corrupção é um dos problemas mais sérios que assolam as novas e velhas democracias. Envolve o abuso do poder público para benefício privado, inclusive vantagens para partidos de governo em detrimento da oposição. Frauda a igualdade política, pois seus protagonistas ganham poder e benefícios políticos incompatíveis com os que alcançariam através de modos legítimos de competir politicamente. Distorce a dimensão republicana da democracia ao fazer as políticas públicas resultarem não da disputa entre projetos diferentes, mas de acordos de bastidores favorecendo interesses espúrios; e assim, afeta a legitimidade da democracia.

Estudos convencionais sustentam que ela deriva do grau de desenvolvimento social e econômico das nações, do seu desenho institucional ou do desempenho de governos; e tratam de consequências sistêmicas negativas como o clientelismo e o nepotismo ou de suas supostas implicações positivas para a estabilidade política em função do engraxamento de estruturas burocráticas que ela facilitaria. Modernização e desenvolvimento são vistos como condição necessária para inocular o sistema político de crimes contra o interesse público. Sociedades menos desenvolvidas ou de experiência democrática insuficiente tenderiam a não distinguir entre pagamentos legítimos e prebendas ilegais nas relações entre agentes públicos e privados e estimulariam a tolerância social diante de comportamentos antirrepublicanos, tornando letra morta o primado da lei.

Sistemas democráticos competitivos colocam o comportamento de burocratas e políticos sob vigilância dos eleitores. A associação entre indicadores de liberdades civis e políticas e a percepção da corrupção, baseada em índices internacionais agregados, varia, mas a longevidade da democracia e a liberdade de imprensa asseguram a responsabilização de políticos corruptos. Não impedem a existência da corrupção, mas oferecem alternativas para a sociedade punir os responsáveis.

Esses estudos contribuíram para o conhecimento do problema, mas não abordaram a influência da cultura política ao lado de outros fatores que afetam a qualidade da democracia. Estudos recentes sobre a América Latina estão mudando isso. Após a democratização, escândalos de corrupção atingiram a Argentina de Carlos Menem, o Peru de Alberto Fujimori e Alan García, o México de José Lopez Portillo e Carlos Salinas de Gortari, o Equador de Abdala Bucaram e a Venezuela de Rafael Caldera e Carlos Andrés Pérez, este, apeado do poder, como Collor de Mello, por um impeachment motivado por uso ilegal de recursos públicos. A corrupção foi associada a três fatores principais: oportunidades criadas pela dispersão de poder com mais agentes transacionando favores públicos em troca de benefícios privados; reformas neoliberais que ampliaram o poder dos agentes sobre bens como empresas públicas e aumentado as oportunidades de negociações espúrias; e emergência de lideranças personalistas e carismáticas levadas ao governo pela mobilização de massas através da TV.

Campanhas eleitorais caras com o uso da TV e do marketing exigem recursos só alcançáveis pela promessa de favores a financiadores privados. Isso teria levado os partidos a recorrer a mecanismos como o caixa 2 ou os chamados gastos eleitorais não contabilizados, como dirigentes do PT tentaram justificar o uso ilegal de recursos privados no Brasil. Análises da percepção do fenômeno na América Latina confirmaram que países desenvolvidos têm índices mais baixos de corrupção que os menos desenvolvidos, mas isso não explica por que Argentina, Brasil, México e Venezuela são classificados pela Transparência Internacional como muito corruptos. O advento da democracia per se, e mesmo sua continuidade, não garantem o controle da corrupção. O caráter endêmico do fenômeno sugere que, ao lado do aperfeiçoamento de mecanismos institucionais, a cultura política também conta.

As experiências neopopulistas na região com lideranças personalistas e carismáticas estimulando a relação direta entre líderes e eleitores, desqualificando mecanismos de fiscalização como parlamentos e tribunais de conta, sugerem isso. Mas o Brasil não seria passível dessa distorção da democracia, segundo analistas. Seu desenvolvimento econômico e institucional e suas políticas sociais teriam criado condições para a estabilidade política e, aparentemente, menor influência de práticas neopopulistas. O argumento pode ser testado pelo exame do papel da cultura política na continuidade da corrupção. Qual era a percepção dos brasileiros dos fatos quando ocorreram as denúncias do mensalão? Como a opinião pública avaliou a corrupção em momentos-chave da história política como 1993 e 2006, ou seja, um ano após os dois mais importantes casos recentes, o de Collor de Mello em 2002 e o de Lula da Silva em 2005?

As questões envolvem os valores e atitudes dos eleitores diante do abuso do poder. Associada ao exercício do direito de voto, a accountability vertical depende de que as pessoas sejam capazes de identificar se a corrupção existe. É o ponto de partida da decisão de continuar convivendo com políticos que praticam a corrupção ou puni-los em defesa dos interesses públicos. Em 2005, pesquisas mostraram que 58% dos entrevistados tinham conhecimento das denúncias de corrupção envolvendo o governo Lula e 78% acreditavam que o presidente tinha muita ou alguma responsabilidade nos fatos, embora muitos não vissem seu envolvimento direto. Em 2006 os entrevistados consideraram que a situação da corrupção no país tinha piorado não só no governo de Collor, mas também no de Lula em comparação com os dos antecessores. Minhas pesquisas de 2006 incluíram perguntas sobre a corrupção e os resultados mostraram uma relativa aceitação social dela no País. O que explica isso?

Desenvolvimento, desempenho institucional e a ação de governos são determinantes daquela aceitação, mas também a cultura política. Em regiões menos desenvolvidas a aceitação da noção "rouba, mas faz" foi maior, assim como entre os menos escolarizados, mas, mais importante, entre os que avaliaram positivamente o governo Lula. Os conservadores quanto ao papel do Estado diante das desigualdades sociais e econômicas também apoiavam o rouba, mas faz, e só os favoráveis a valores democráticos ou que rechaçaram a volta de alternativas autoritárias eram contra. Ou seja, a aceitação social da corrupção era maior nas regiões menos desenvolvidas, entre os politicamente autoritários, socialmente conservadores e os satisfeitos com o governo Lula. A aceitação da corrupção afeta a adesão à democracia, a confiança nas instituições democráticas ou a participação política?

As análises mostraram que afeta negativamente, ao contrário das avaliações positivas do governo e da economia. A aceitação da corrupção também se associou às opiniões favoráveis a que os presidentes deixem de lado as leis e o Congresso Nacional em situações de crise, à volta dos militares ao poder, à adoção de um sistema de partido único no País e a maiores índices de desconfiança nas instituições públicas.

Esses traços da cultura política impactam a qualidade da democracia ao comprometer a adesão ao regime, estimular a aceitação de escolhas autoritárias e inibir a participação política. Aceitar a corrupção faz as pessoas admitirem que a lei pode ser fraudada, que sua capacidade de fazer valer direitos inexiste e que os rumos da política não mudam nunca. Mas a experiência de democracias consolidadas mostra que a cultura política não é imutável: ela se transforma sob o impacto de mudanças sociais, desempenho de instituições como o STF e, principalmente, o exemplo e a responsabilidade de líderes políticos e de partidos. No Brasil, contudo, como ficou claro no caso de Lula, do PT e de outros partidos, esse é um dos elos de que padece a democracia.

* José Álvaro Moisés - é professor titular do Departamento de Ciência Política da USP e autor do E-Book O Papel do Congresso Nacional no Presidencialismo de Coalizão. Este texto é resumo de um capítulo do livro A Desconfiança Política e os seus Impactos na Qualidade da Democracia - O Caso do Brasil (EDUSP, 2012, NO PRELO)

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

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