segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Direito ao não direito - José de Souza Martins

A indevidamente chamada "greve" de caminhoneiros, dessa semana, perturbou a movimentação nas estradas, causando prejuízos ao País. Retardamentos de ônibus e carros e elevação dos preços dos alimentos, pela retenção dos produtos agrícolas na origem, foram algumas das consequências. Nesse vamos ver quem pode mais, o governo sentou à mesa para discutir o assunto. O movimento dos caminhoneiros foi desencadeado contra direitos que lhes foram concedidos em lei: repouso contínuo de 11 horas em cada 24 e descanso de meia hora a cada 4 horas rodadas. O objetivo da lei é diminuir os acidentes nas rodovias.

A palavra greve é, nesse caso, uma usurpação semântica, pois greve é outra coisa. Greve é movimento social pela obtenção de um direito ou o reconhecimento de um direito que, em relação a um grupo, não está sendo respeitado. O movimento dos caminhoneiros foi o oposto do que uma greve é. Os manifestantes insurgiram-se contra norma destinada a proteger a sociedade contra os riscos decorrentes do trabalho excessivo. Negam aos outros o benefício que vetam para si.

Eles têm argumentos para resistir ao cumprimento do que a lei ordena. Alegam que nas rodovias brasileiras não há pontos de parada e abrigos suficientes para assegurar que, ao observar os limites da jornada de trabalho, terão a contrapartida de lugares adequados à interrupção. Uma questão difícil de resolver na nossa cultura do eu quero, logo posso. Estão dizendo que o governo impõe leis, mas não cumpre sua parte ao não prever condições para que sejam cumpridas. Ainda padecemos a limitação de achar que lei é simplesmente papel escrito, que basta escrever, assinar e publicar no Diário Oficial que o que nela se prevê acontecerá.

Em matéria de reivindicações esdrúxulas, de recusa de direitos e benefícios, os caminhoneiros não estão sozinhos. Vários têm sido os episódios de grupos sociais que, por uma razão ou outra, recusam direitos sociais inscritos na lei, alegando que os prejuízos que terão serão maiores que os benefícios.

Há poucos anos, a extensão de direitos trabalhistas às empregadas domésticas teve reação antagônica de dirigentes da categoria e temor por parte das beneficiadas. Argumentavam que o direito ao FGTS por parte das domésticas teria o efeito bumerangue de fazer com que as patroas, que deveriam contribuir para o fundo, procurassem outra alternativa para os serviços domésticos. Coisa que aconteceu em outros países, como a substituição das empregadas baratas, que se tornavam caras, por equipamentos domésticos substitutivos e por um relaxamento notório nos cuidados da casa, seja quanto à limpeza, seja quanto ao passar roupa. Sem contar que as cozinheiras já haviam desaparecido há muito, o que em vários países levou a desastrosas inovações e improvisos culinários.

O mesmo vem acontecendo em relação ao combate ao trabalho escravo aqui no Brasil. Não é incomum que os fiscais do Grupo Móvel de Fiscalização, do Ministério do Trabalho, ao localizarem e libertarem trabalhadores escravizados, se vejam na estranha situação de que haja trabalhadores que recusam a intervenção e recusam a libertação e o retorno ao lugar de origem e de recrutamento. Sem contar os que fogem para o mato e se ocultam enquanto dura o ato de fiscalização. No fundo, no Brasil da margem, as relações sociais e mesmo as de trabalho são reguladas por uma economia moral em tudo estranha ao que é próprio do mundo moderno.

A fria letra da lei tem sentido para o mundo racional das instituições do Estado, mas não necessariamente para o cidadão que seria por ela beneficiado. A começar pelo fato de que o Estado brasileiro, por várias razões, não é um Estado onipresente. O fiscal ocasional das relações de trabalho será substituído na sequência da fiscalização pelo arbítrio do fazendeiro e até pela força de seus pistoleiros e jagunços. Na crua realidade cotidiana de trabalhadores que vivem no limiar da civilização, a vida é organizada segundo os preceitos do poder pessoal e da violência costumeira. Há alguns anos, houve o caso de um desses trabalhadores, no Mato Grosso, que, fugindo da fazenda de seu cativeiro, teve que caminhar 400 km por dentro da mata até achar uma pequena cidade onde, no fim das contas, não havia nenhum representante da Justiça do Trabalho. Acabou empurrado de um lado para outro na busca do abrigo da lei que, afinal, não encontrou.

Em todos esses casos, estamos em face de um limite cultural ao direito. Embora o direito seja expressão de valores universais relativos à emancipação do homem em face de opressões e carências que o minimizam, ele tem limites. São os limites dos costumes e da tradição, mais elásticos nas sociedades mais modernas e desenvolvidas e menos elásticos em sociedades ainda marcadas por sobrevivências culturais arcaicas, como a nossa.

José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, autor, entre outros, de Uma arqueologia da memória social (Ateliê)

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

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