• Como a voz das ruas se traduzirá em voz nas urnas?
- Valor Econômico
Se tivéssemos de destacar uma questão que mobilizou por décadas a atenção de nossos intelectuais e de boa parte de nossa elite política, não teríamos dificuldade em eleger a suspeita reiterada sobre a virtude de nossas instituições, incapazes, para muitos, de produzir base adequada ao exercício do bom governo. Filha da República, a suspeita sobre a adequação de nossas instituições políticas bateu às portas do golpe de 1964, em diagnósticos canônicos, como o de Celso Furtado, que apontou para a situação crônica de conflito entre um Congresso atrasado, expressão das oligarquias rurais, e um Executivo modernizador, ancorado nos segmentos urbanos. Ou, ainda, em diagnóstico póstumo de Wanderley Guilherme dos Santos, sobre as raízes do ocaso das instituições democráticas em 1964, solapadas pelo quadro de paralisia decisória no interior do Congresso, com o consequente bloqueio das ações de governo.
Após duas décadas de normalização da vida democrática, a questão dos entraves à governabilidade no Brasil para muitos parecia não só equacionada, como também ultrapassada. A nova perspectiva, otimista, avançou o seguinte prognóstico: cumprido o requisito central do presidencialismo de coalizão - a formação de maioria parlamentar por meio da alocação de pastas ministeriais aos partidos aliados -, os chefes do Executivo se veriam munidos dos instrumentos necessários à implementação de suas respectivas agendas de governo. A taxa de sucesso legislativo dos presidentes Fernando Henrique, Lula e Dilma foi apresentada como evidência inconteste do funcionamento adequado do nosso presidencialismo de coalizão.
Sem entrar no mérito do diagnóstico, cabe sublinhar que a apreciação positiva sobre a dinâmica de nossas instituições derivou de análise que se limitou ao que se passava no andar de cima do sistema político, ou seja, ao padrão de interação - mais ou menos cooperativo - entre o presidente, o Congresso e os partidos políticos; esqueceu-se do andar de baixo, onde o sistema político se articula - de forma mais ou menos eficiente - com a sociedade. Ora, se as mazelas associadas a nossas instituições representativas - excesso de partidos, clientelismo, personalização da atividade política - não inviabilizaram a governabilidade, produziram, no entanto, hiato crescente entre os cidadãos e o sistema político. Hiato que irrompeu de forma aguda nas jornadas de 2013, quando os manifestantes que foram às ruas, embora divergissem na abrangência de sua pauta de reivindicações, convergiram no repúdio às instituições e no rechaço a todos aqueles situados no andar de cima do sistema político: Congresso, partidos e governos. O hiato entre o sistema político e a sociedade se traduziu, assim, em inédita ameaça à governabilidade, considerada até então como página virada da nossa crônica política.
A cinco meses das eleições, o país vive um cenário pré-eleitoral inédito, que guarda continuidade com as jornadas de junho de 2013 e que se traduz na incapacidade do sistema político de conter as demandas da sociedade: a escalada de greves em todos os setores e o recrudescimento das manifestações de rua ocorrem em meio à perda de legitimidade das instituições, processo que vem de longe, e que teve nas jornadas de junho, vale frisar, seu ponto de inflexão.
Nesse quadro, mais importante do que projetarmos o desempenho futuro dos três principais candidatos à Presidência - Dilma, Aécio e Eduardo Campos - é indagarmos em que medida a voz das ruas poderá ser mobilizada, com sucesso, para que se converta no curso do processo eleitoral em voz nas urnas. Numa palavra, cabe indagarmos em que medida o jogo eleitoral que se inicia será capaz de, senão desfazer, ao menos minorar o hiato hoje instalado entre o sistema político e a sociedade no país.
Certamente, as pré-condições para essa reaproximação se acham postas na mesa. Ora, todas as pesquisas de opinião convergem na identificação de linhas de demarcação nítidas e polarizadas subjacente às candidaturas presidenciais. Dilma tem seu núcleo duro de apoio entre os eleitores de baixa renda e escolaridade, nas regiões Norte e Nordeste. Venceria nesses segmentos logo no primeiro turno. Perderia para a oposição, com o PSDB na dianteira, entre os eleitores de alta renda, com nível superior de escolaridade e na região Sudeste. A eleição se mostra competitiva, entre governo e oposição, nas regiões Sul e Centro-Oeste e entre eleitores com nível médio de escolaridade. O quadro pré-eleitoral de 2014 repete, assim, o cenário do Brasil dividido e polarizado de 2010, divisão que hoje aparece, no entanto, como virtuosa, já que a polarização pode se afigurar como antídoto contra a fragmentação das ruas e como caminho de reaproximação da cidadania com as instituições políticas.
Uma eleição que, em razão dos baixos índices de aprovação do governo, se decidirá no segundo turno, traz diferenças adicionais em relação a 2010. Sabem os candidatos e seus marqueteiros que hoje a estratégia recomendável é o esforço de mobilização dos núcleos duros das candidaturas por meio da radicalização das teses próprias de cada campo. Nada mais diferente da corrida despolitizadora rumo ao centro, que marcou 2010. O cenário eleitoral presente, com tendência à polarização e à radicalização, é capaz de fomentar a migração da rua desorganizada para as urnas, reposicionando, pelo menos temporariamente, o sistema político na sua função de contenção de demandas - contenção fundamental para a garantia de cenário futuro de governabilidade.
Nelson Rojas de Carvalho é professor da UFRRJ, pesquisador do Observatório das Metrópoles/Ippur/UFRJ
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