• Joaquim Barbosa, que chegou a trabalhar como faxineiro, fez doutorado em Paris; já travou embates acirrados com colegas no Supremo, mas amigos garantem que ele surpreende pelo seu bom humor
Chico Otávio e Carolina Brigido - O Globo
RIO — Joaquim Barbosa debutava no Supremo Tribunal Federal (STF) e sua coluna não incomodava tanto quando o ministro se despediu dos gramados representando, pela última vez, o time da Procuradoria Regional da República do Rio de Janeiro, na pelada do encontro anual dos membros do Ministério Público Federal. O time, outrora invencível pela categoria do ministro, estava cheio de novatos. Não era o mesmo. Joaquim passou o jogo reclamando com outro veterano, Flávio Paixão, a quem responsabilizava pela escalação. As queixas foram tantas que Paixão explodiu, respondendo asperamente.
Poucos se lembram do resultado do jogo, mas Paixão entrou para o folclore do MP como o procurador que desafiou o STF. Atualmente, atacar publicamente Barbosa, mesmo em jogos de futebol que acabam em abraços, pode custar ao detrator a fama de vilão. O relator do mensalão, que completará 60 anos em outubro, virou uma espécie de herói vingador, comparado nas redes sociais a Batman e Super-Homem. É nessa condição que o ex-menino pobre de Paracatu de Minas chegou ao mais alto degrau da carreira: a presidência do STF. Hoje, com o anúncio da aposentadoria aos presidentes do senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), Barbosa marca o fim de um ciclo no Supremo. Ele disse que vai se dedicar à vida privada.
Para conhecer mais sobre o relator do mensalão é preciso recuar no tempo. Foi na passagem pelo Ministério Público, onde atuou por 19 anos, que Joaquim consolidou o seu pensamento jurídico, conviveu socialmente, cantou Milton Nascimento, tocou piano nas rodas de colegas e enfrentou dissabores.
Três colegas do ex-procurador garantem que Joaquim não é essa figura indignada, brigona, que fica em pé ao defender votos para tapear as dores na coluna. Entre amigos, é capaz de brincar consigo mesmo e reagir com humor até em momentos delicados, como ao ser confundido com um manobrista enquanto aguardava, de terno, a chegada dos colegas para uma comemoração de fim de ano numa casa noturna do Rio.
— Para nossa surpresa, ele reagiu com bom humor. Agradeceu por estar recebendo um carro de presente, mas disse que o dele era melhor — disse um dos amigos.
A indicação de Barbosa para o STF, à época, surgiu do desejo de Luiz Inácio Lula da Silva colocar um negro na Corte. O então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, começou a procurar alguém. Na época, Barbosa vivia nos Estados Unidos e veio ao Brasil de férias. Coincidentemente, encontrou Frei Betto, que conhecera em organizações não governamentais, no aeroporto. Frei Betto levou o nome a Lula, e Barbosa recebeu um e-mail com o convite para uma conversa com Thomaz Bastos. Voltou ao Brasil imediatamente e ficou.
Embora não goste de associar a nomeação de Lula à cor da pele, preferindo explicá-la pela consistência de sua obra, Joaquim construiu uma carreira marcada pela defesa da ação afirmativa, incluindo a política de cotas, para reduzir desigualdades sociais. Para colegas de MP, é um "juiz consequencialista", estilo que busca adequar as decisões às exigências da sociedade, e pode compensar o isolamento na Corte com o calor das ruas.
Na Corte, uma de suas caraterísticas é a falta de jogo de cintura. A expectativa é que a gestão de Joaquim seja um exercício solitário do poder, mas ministros, até supostos adversários, disseram que o apoiarão porque, acima de tudo, está a instituição. Ricardo Lewandowski, vice, foi alçado à condição de desafeto no julgamento do mensalão.
Nem sempre foi assim. Em 2009, Joaquim disse que Gilmar Mendes estava "destruindo a credibilidade da Justiça brasileira". A Corte quis divulgar nota de repúdio à fala de Barbosa. Lewandowski se recusou a assinar, obrigando os colegas a recuarem. No dia seguinte, Lewandowski e Ayres Britto levaram Joaquim para almoçar em Brasília a fim de animá-lo.
Joaquim é um sujeito família. Costuma ouvir os conselhos da mãe, Benedita. Evangélica, ela inclui o filho famoso em suas orações — prática da qual ele não é adepto. Benedita tem 72 anos e mora em Brasília, assim como os sete irmãos e os sobrinhos do ministro. O pai, Joaquim, morreu há quatro anos. Mesmo não sendo religioso, o filho Joaquim usa um escapulário para se proteger.
Seus amigos estão concentrados no Rio. Na capital fluminense mora o filho, Felipe, jornalista de 28 anos. O ministro costuma passar fins de semana na cidade, em seu apartamento no Leblon. Tinha uma companheira, mas o relacionamento terminou pouco antes do início do julgamento do mensalão. Nos últimos anos, sofre com dores crônicas nos quadris, que o impedem de ficar numa mesma posição por muito tempo; por isso, está sempre trocando de cadeira no plenário. Faz sessões de fisioterapia e massagem, além de tomar remédios fortes.
Conhecido em casa por Joca, Joaquim é o primeiro de oito filhos de uma família pobre. O pai era pedreiro; a mãe, faxineira. Quando tinha 10 anos, o pai vendeu a casa e comprou um caminhão. Deu certo, e a renda da família melhorou.
Nos anos 70, Joaquim se mudou para a casa de uma tia no Gama, cidade do Distrito Federal perto de Brasília. Estudava em colégio público. Trabalhou como faxineiro e tipógrafo na gráfica do Senado.
Foi aprovado no vestibular de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Na mesma turma, estudava Gilmar Mendes. Formado, chefiou a Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde e advogou para o Serpro. Foi oficial de chancelaria do Itamaraty e serviu na Finlândia. Chegou a ser aprovado em concurso para diplomata, mas acabou rejeitado na entrevista. Por fim, passou no concurso do Ministério Público Federal, onde trabalhou por 19 anos.
No Ministério Público, tirou licença para fazer mestrado e doutorado em Direito Público pela Universidade de Paris-II. É especialista em Direito e Estado pela UnB e professor licenciado da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi acadêmico visitante em três universidades dos Estados Unidos: Columbia, Nova York e Califórnia. É fluente em inglês, francês e alemão, e costuma fazer citações em outros idiomas de forma corriqueira.
Quando tomou posse no STF, em 2003, fez alguns amigos. O primeiro foi Ayres Britto, que chegou ao tribunal no mesmo ano. Foram instalados em apartamentos no mesmo prédio, em Brasília. Três anos depois, com a chegada de Lewandowski e de Cármen Lúcia à Corte, o quarteto ficou completo: saíam para conversar e riam. Barbosa mantém contato apenas com Ayres Britto, que presidiu a Corte até se aposentar, em novembro de 2012. Por isso, a amizade não seria de grande valia nos dois anos em que Barbosa comanda o Supremo.
Uma das primeiras discussões que Barbosa protagonizou no tribunal foi em 2004, com Marco Aurélio Mello, que autorizara por liminar uma mulher a abortar um feto anencéfalo. Joaquim disse que a decisão era polêmica para ser tomada sozinho. Marco Aurélio, irritado, disse que, se estivesse na Idade Média, resolveria o caso num duelo. Outra briga foi com Cezar Peluso, aposentado em 2012, que sugeriu que o colega era inseguro. Em resposta, Barbosa disse em entrevista que o colega era "desleal", "caipira" e "tirano". Atualmente, o ministro mais próximo de Joaquim é Luiz Fux, que o acompanhou em uma consulta médica no Rio. Mas não são íntimos.
A fama de Joaquim não é das melhores entre os advogados, que não costumam ser recebidos por ele em audiências. Para o ministro, o certo é receber, conjuntamente, as partes do processo.
Nas ruas, a popularidade de Joaquim cresceu a cada novo condenado. Ao votar o mensalão, foi saudado como herói no Rio. Virou máscara de carnaval. O menino de Paracatu que se tornou o primeiro negro a presidir o STF vai ter que buscar equilíbrio entre a simpatia das ruas e o rigor da Corte. O escapulário vai ter trabalho.
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