No Rio, terror espalhado pela guerra entre facções mostra que problema está longe de ser resolvido
‘Fique em casa.’ A recomendação tantas vezes repetida nestes seis meses de pandemia foi dita nos últimos dias aos cariocas, desta vez motivada por outra epidemia, a da violência. O protocolo se justificava diante do terror que tomou conta de bairros da Zona Sul e regiões centrais do Rio, acossados por uma guerra — mais uma — entre facções pelo controle dos pontos de venda de droga. A retomada do conflito entre quadrilhas, traduzida em mortes, tiros a esmo, sequestro de moradores e terror, revela quão distantes estamos de resolver o problema. A pandemia parecia ter trazido certo alívio aos indicadores, mas o tráfico aproveita o momento para se reorganizar. A decisão do STF que proibiu operações policiais nas comunidades do Rio contribuiu para reduzir a violência policial, mas, ao mesmo tempo, dificulta ações necessárias para reprimir as organizações criminosas.
É flagrante a falha de inteligência que permitiu que as ruas do Rio se transformassem em campos de batalha, expondo inocentes. Para não falar no problema crônico da corrupção policial, que agrava o quadro, na medida em que dificulta o combate às quadrilhas.
A situação do Rio não é diferente do resto do país, onde impera a guerra entre facções. Isso fica patente no Atlas da Violência 2020, divulgado quinta-feira. A redução de 12% nos homicídios em 2018 tinha tudo para ser uma boa notícia, não fossem os outros dados do estudo do Ipea e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O número de mortes por causas indeterminadas, não esclarecidas, aumentou 25,6%. Parte dos homicídios pode, portanto, ter entrado nessa conta.
Mas não é a única explicação para a queda. De acordo com os pesquisadores, também podem ter contribuído a melhoria das políticas estaduais; uma trégua entre as facções; o Estatuto do Desarmamento, apesar das sucessivas tentativas de destruí-lo; e a diminuição gradativa da participação de jovens no conjunto da população.
Ainda que se considere sem ressalvas a redução dos homicídios no país, os números divulgados são vergonhosos. Em 2018, 57.956 brasileiros perderam a vida para a violência. A cada dez minutos alguém é assassinado no Brasil. Num dia “normal”, são 158. Para ter ideia da catástrofe, é mais do que a pandemia de Covid-19 matou na Itália. É quase metade das vítimas da doença no Brasil, segundo país com maior número de mortes. Com uma diferença: o drama da violência é permanente.
Esses números abarcam inúmeras tragédias. Crianças mortas por balas perdidas; mulheres assassinadas pelos companheiros ou ex; a guerra do tráfico, que enseja casos como o da mãe que morreu ao proteger o filho de 3 anos no Rio — e tantas outras. Sabe-se que grande parte desses crimes (cerca de 70%) está relacionada às armas de fogo. Mas o Estatuto do Desarmamento, aprovado com o intuito de estancar a matança, é alvejado com frequência pelo presidente Jair Bolsonaro, com sua obsessão pela flexibilização da posse e do porte de armas. Futuramente, é provável que os números reflitam as consequências dessa insensatez.
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