Carta Capital
Dez anos após seu lançamento, ‘O Capital no Século XXI’ ainda se mostra central para a compreensão da desigualdade
O Capital
no Século XXI (2013), de Thomas Piketty, foi analisado por
autores de diferentes escolas na coletânea de artigos enfeixados em Depois de Piketty. Entre os tantos
articulistas figuram Bradford Delong, Robert Solow, Paul Krugman, Laura Tyson,
Michel Spence e Branko Milanovic. Todas as contribuições cuidam de investigar
os processos econômicos, sociais e políticos que articulam as metamorfoses da
riqueza ao longo de quatro séculos e seus efeitos distributivos.
Thomas Piketty, sabe-se, palmilha os
caminhos das relações entre riqueza e renda desde o século XVIII, quando
predominava a riqueza fundiária – cujo declínio foi imposto pelas forças das
políticas mercantilistas de incentivo à manufatura – até os arranjos
contemporâneos empoderados pelo patrimonialismo financeiro e pela concentração
do capital nos grandes oligopólios que dominam todos os setores da indústria e
dos serviços na arena global.
Analisando as oito maiores economias desenvolvidas do mundo, Piketty revela que a participação da riqueza agregada subiu de cerca de 200% a 300%, em 1970, para 400% a 600%, atualmente. O formato da curva que expressa a evolução dessa relação é em “U”, com queda acentuada na participação da riqueza agregada sobre a renda no período que compreende as duas Guerras Mundiais e a Grande Depressão. A tendência inverte-se de forma mais acentuada a partir dos anos 70 do século XX.
Em novo livro, um conjunto de autores se
debruça sobre as metamorfoses da riqueza no mundo
No pós-Guerra, as políticas econômicas
foram forjadas sob o receio de reedição do desastre social e econômico ocorrido
na Grande Depressão, almejando estabilizar uma economia com fortes inclinações
à instabilidade.
Seria razoável afirmar que nos Trinta Anos
Gloriosos estava invertida a equação que Piketty utiliza para caracterizar a
dinâmica das economias contemporâneas “financeirizadas”. Piketty apresenta uma
relação simples: r>g, onde r é riqueza e g, a renda. No período dito
glorioso, a renda, g, crescia mais que a riqueza, r.
Em seu artigo, Paul Krugman dispara seus
obuses na direção daqueles que tentam desacreditar qualquer menção à
desigualdade. Declarou Robert Lucas Jr. dos píncaros de suas sabedorias
racionais: “Das tendências que são prejudiciais à economia sã, a mais sedutora
e, na minha opinião, a mais venenosa é focar em questões de distribuição”.
Krugman contesta: “Nos Estados Unidos, a
parcela da renda nacional que vai para o 1% mais rico seguiu um grande arco em
forma de U. Antes da Primeira Guerra Mundial, 1% recebia cerca de um quinto da
renda total na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Em 1950, essa fatia foi
reduzida em mais da metade”.
Nos Trinta Anos Gloriosos, o circuito da renda e do emprego desenvolvia-se, então, nos espaços nacionais da economia internacional, impulsionando o adensamento das relações domésticas entre manufatura, serviços e agricultura. A formação da renda e da demanda agregadas decorria da disposição de gasto dos empresários com salários e outros meios de produção que também empregam assalariados. Ao decidir gastar com o pagamento de salários e colocar a capacidade produtiva em operação ou ampliá-la, o coletivo empresarial avalia a perspectiva de retorno de seu dispêndio imaginando o dispêndio dos demais.
Na era da globalização, a redistribuição
espacial da manufatura e o avanço tecnológico engendraram a precarização do
emprego e a estagnação dos rendimentos dos trabalhadores, reduzindo assim a
capacidade de difusão do gasto das empresas. As famílias submetidas à lenta
evolução dos rendimentos sustentaram a expansão do consumo na vertiginosa
expansão do crédito, que criou poder de compra adicional para as famílias de
baixa e média renda ao mesmo tempo que as aprisionou no ciclo infernal do
endividamento.
Os detentores de riqueza financeira
apropriaram-se, ademais, do “tempo livre” criado pelo avanço tecnológico, que
promove simultaneamente a desqualificação da massa assalariada e a polarização
do mercado de trabalho. Os “desqualificados” tornam-se dependentes crônicos do
endividamento, sempre ameaçados pelo desemprego e desesperados pela
sobrevivência.
Sob os auspícios do capital financeiro e de
um sistema monetário internacional assimétrico, ocorreu a brutal centralização
do controle das decisões de produção, sua fragmentação espacial e, ainda, a
utilização dos lucros em um núcleo reduzido de grandes corporações e
instituições financeiras.
A centralização do comando no capital
financeiro alterou profundamente a estratégia da grande empresa produtiva.
Enquanto os lucros acumulados são primordialmente destinados às operações de
tesouraria, os novos empréstimos financiam a recompra das próprias ações para
garantir a “valorização” da empresa. Dados do Federal Reserve revelam que,
entre 2003 e 2008, o volume de crédito destinado a financiar posições em ativos
já existentes foi quatro vezes maior do que os créditos destinados à criação de
emprego e renda no setor produtivo.
A frugalidade dos ricos amplia o papel da
herança na reprodução e acumulação da riqueza, o que desmente o caráter
meritocrático e “competitivo” do enriquecimento alegado pelos liberais. Ao
desdobrar a riqueza nas formas em que se transmutam ao longo dos três séculos
de história, Piketty faz reaparecer no proscênio da vida econômica a tendência
“natural” do capitalismo à preeminência do capital-propriedade e da valorização
de ativos já existentes sobre as aventuras do investimento produtivo.
Como diz ele no capítulo final de Depois de Piketty, em resposta às
reflexões presentes nos textos anteriores, quando o empresário se torna um “rentier”, dominante sobre os que
possuem apenas o próprio trabalho, “o capital se reproduz mais velozmente que o
aumento da produção e o passado devora o futuro”.
Publicado na edição n° 1268 de CartaCapital,
em 19 de julho de 2023.
2 comentários:
Este é o Luiz Gonzaga Belluzzo professor titular do Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Formado em Direito e Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), pós-graduado em Desenvolvimento Econômico pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) e Doutor em economia pela Unicamp.
Leiam tudo o que ele escreve. Está demorando a ser Ministro
Lendo e tentando entender.
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