sábado, 15 de julho de 2023

Eduardo Affonso - O país-caixão

O Globo

Os prédios que se desmancham no Grande Recife são uma ótima metáfora do Brasil, terra de soluções fáceis, imediatistas

Um prédio desabou, na semana passada, na Região Metropolitana do Recife, matando 14 pessoas — entre elas, quatro crianças. O imóvel havia sido interditado em 2010, por problemas estruturais, mas fora reocupado, irregularmente. Há mais de uma década, famílias que não tinham onde morar arriscavam a vida no interior do edifício condenado.

Em 33 anos, na mesma região, já ruíram 17 “edifícios-caixão”, de alvenaria autoportante. A palavra “caixão” era para significar apenas uma caixa grande, mas tem se mostrado premonitória.

Não que a técnica, em si, seja pouco confiável — mas apresenta restrições: não permite remover paredes ou abrir novos vãos; os materiais têm de ser de boa qualidade; o terreno, estável; a execução, perfeita. Tudo muito difícil de garantir nas “habitações de interesse social”, nas quais o custo costuma ser o fator mais importante. Projeto, manutenção, acessibilidade, durabilidade, dignidade, conforto, segurança são só um detalhe.

O Instituto de Tecnologia de Pernambuco (Itep) identificou, no Grande Recife, perto de 5.300 edifícios construídos assim — sem pilares ou vigas. Mais de mil foram considerados com alto risco de desabamento; 260, com risco muito alto. Não são só caixões: são bombas-relógio.

O déficit habitacional avança, e faltam políticas públicas eficientes para eliminá-lo. Pesquisa da Fundação João Pinheiro apontava a necessidade de 5,8 milhões de novas moradias (dados de 2019). Mas, em vez de priorizar um teto para quem se abriga em barracos insalubres, sob marquises ou em prédios que podem ruir, o programa de casas populares deve ser estendido a famílias de classe média.

Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), um em cada três brasileiros não se alimenta com a quantidade ou a qualidade necessárias, e 21 milhões ficam sem comida por um ou mais dias. Em média, 11 crianças menores de 5 anos são internadas, diariamente, por problemas causados pela desnutrição.

“Quem tem fome tem pressa” é um lindo slogan, mas não aquece a economia nem aumenta a arrecadação de impostos. Por isso, em vez de focar na erradicação da miséria (e da fome), lá vamos nós estimular a indústria automobilística e a de eletrodomésticos.

O Instituto Trata Brasil divulgou, em março, que 100 milhões de brasileiros não têm rede de esgoto e falta água potável para 35 milhões. Como a prioridade do governo é proteger empresas deficitárias ou ineficientes, a meta do Marco Regulatório do Saneamento — garantir fornecimento de água a 99% da população e tratamento de esgoto a 90% — vai pelo ralo.

Em lugar de investir no ensino fundamental, partimos para a briga contra a reforma do ensino médio e pela ampliação da reserva de vagas em universidades por meio de cotas (agora, para os filhos de vítimas da Covid-19).

Fosse o país uma edificação, seria como caprichar no “rooftop” (que é como se diz terraço, em português) e investir nas esquadrias, negligenciando as fundações.

Os prédios que se desmancham no Grande Recife são uma ótima metáfora deste país-caixão, terra de soluções fáceis, imediatistas. De políticas talhadas para um mandato, levadas a cabo por gente cujo horizonte está apenas um palmo adiante do nariz.

Tem tudo para dar certo a longo prazo. Confia.

 

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