quarta-feira, 30 de julho de 2025

A liberdade de expressão nas redes sociais - Nicolau da Rocha Cavalcanti

O Estado de S. Paulo

O artigo 19 protege o exercício da liberdade de expressão, liberdade esta que não inclui a prática de nenhum crime

Discordo da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI, Lei 12.965/14). Mas discordo ainda mais de algumas críticas que têm sido feitas à decisão, como se a Corte tivesse autorizado a censura contra cidadãos nas redes sociais. Num cenário em que o Direito tem relevância cada vez maior na vida social e econômica do País, é fundamental entender o sentido e o alcance, seja do ordenamento jurídico, seja da jurisprudência. Não se enfrenta uma decisão judicial atribuindo-lhe algo que ela não faz.

O erro do STF foi entender que, para proteger direitos fundamentais, era necessário declarar inconstitucional o artigo 19 do MCI. Em vez de dar ao dispositivo uma interpretação sistêmica – alinhada com a finalidade explícita no próprio texto: “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão” –, a maioria dos ministros do Supremo achou que a inconstitucionalidade era a solução.

O artigo 19 trata da responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. Não há nada na Lei 12.965/14 dizendo que as empresas devem ser omissas em relação a crimes praticados em seus ambientes virtuais. Como dispõe o texto, o artigo 19 protege o exercício da liberdade de expressão, liberdade esta que não inclui a prática de nenhum crime.

O que quero dizer com isso? Não é que, antes da decisão do STF, era permitido praticar crimes nas redes sociais até que houvesse uma ordem judicial e, só então, as empresas deveriam atuar. O artigo 19 não diz isso, até porque isso significaria revogar o Código Penal e toda a sistemática de prevenção de crimes num Estado Democrático de Direito.

No entanto, deve-se reconhecer que, mesmo não dizendo isso, o artigo 19 passou a ser interpretado como autorização para a omissão das plataformas: como se a liberdade de expressão significasse que elas deveriam ser absolutamente indiferentes ao conteúdo publicado em seus ambientes virtuais. Tal dinâmica foi provocando verdadeiras anomalias; muito cômodas e lucrativas às plataformas, diga-se de passagem.

No Brasil, para retirar um conteúdo manifestamente falso, passou a ser preciso entrar com uma ação judicial. Não faz sentido, por exemplo, que Drauzio Varella tenha de ir à Justiça pedir a remoção de vídeos falsos, feitos por inteligência artificial, que simulam suas falas para vender produtos. Essa prática criminosa não tem nada a ver com exercício da liberdade de expressão. Coibir de modo ágil tal prática não tem nada a ver com censura.

O MCI estrutura-se em três pilares: liberdade de expressão, proteção da privacidade e neutralidade da rede. Não faz sentido, portanto, invocar a Lei 12.965/14 para justificar a omissão das plataformas em relação aos conteúdos patrocinados, que, por definição, são a negação da neutralidade. Negocia-se visibilidade. Com frequência, recebo a seguinte propaganda de uma rede social: torne-se usuário premium e suas publicações terão até mais 7,5 vezes visualizações. Ora, o MCI não veio dar imunidade jurídica a essa comercial negação da neutralidade. Se uma empresa deseja ganhar dinheiro dando destaque a minhas publicações, o mínimo a fazer é averiguar se elas respeitam as leis penais do País. Tal análise não tem nada a ver com censura.

Outro exemplo. O MCI não protege a conta inautêntica. Entre os fundamentos da disciplina do uso da internet no Brasil estão, diz o artigo 2.º, “os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais”. Ou seja, não era preciso declarar inconstitucional nenhum dispositivo da Lei 12.965/14 para exigir que as plataformas combatam as contas inautênticas e, em caso de omissão, responsabilizá-las.

São as interpretações disfuncionais e assistêmicas que o STF deveria ter excluído, e não declarado parcialmente inconstitucional o artigo 19. Para piorar, esse primeiro erro conduziu a outro erro. Uma vez atribuída a inconstitucionalidade do dispositivo – uma vez excluída do ordenamento jurídico a regulação feita pelo Legislativo em 2014 –, o passo seguinte foi a Corte estabelecer uma nova regulação, como se precisasse substituir o Congresso. Era o que faltava para que a decisão, antes mesmo de ser compreendida, fosse tachada de violadora da separação de Poderes.

Os erros do Supremo não foram pequenos. A trajetória argumentativa é essencial a uma decisão judicial, também para que possa ser compreendida e aceita socialmente. Além disso, o teor dos votos vencedores denota uma visão expansiva do papel da Corte. Fossem mais sóbrios em seus limites, eles poderiam ter chegado ao mesmo resultado com menos resistência. No entanto, é preciso dizer: os efeitos práticos da decisão do STF estão corretos; mais, eles já poderiam ter sido aplicados muito antes da decisão. E é preciso recordar: o STF não conferiu poderes censórios às plataformas de redes sociais. Censura é controle da liberdade de expressão. As plataformas não podem nem devem controlar ideias, apenas não têm o privilégio de ignorar o Código Penal.

 

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