Folha de S. Paulo
O que presidente
americano tem demandado é completamente inaceitável para andamento de qualquer
governo democrático
A direita
bolsonarista brasileira não gosta de ser chamada de extrema
direita. Rejeita a classificação por considerá-la uma tentativa deliberada
de desqualificação por parte dos adversários. Prefere identificar-se apenas
como direita —rótulo de que se orgulha e faz questão de ostentar.
Temos aqui um caso
clássico de dissociação: identifica-se como direita, com orgulho, mas pensa e
age como um movimento extremista que, por falta de opção melhor, aceita operar
numa democracia liberal —ao menos enquanto ela ainda lhe serve. Sua inclinação
natural, porém, é bem outra: atropelar as regras quando possível, driblar as
instituições quando conveniente e, se a ocasião permitir, desferir um golpe
contra o Estado
de Direito —tudo em nome de valores, é claro.
Os quatro anos da presidência de Jair Bolsonaro demonstraram isso. Desde o início, o bolsonarismo se comportou como uma força hostil às amarras do Estado liberal-democrático, que nunca reconheceu.
Capturou a PGR, usou as Forças
Armadas para ameaçar as instituições, atacou universidades e o
jornalismo, instigou uma base social mobilizada contra tudo e todos e tentou
"passar a boiada" sobre leis e procedimentos. Como ato final, tentou
um golpe de Estado.
Perdida a eleição
presidencial, mas com vários governadores e um grande número de parlamentares,
foi-lhe dado o benefício da dúvida. Seria o bolsonarismo agora capaz de
comportar-se como direita republicana, sem tentativas de viradas de mesa,
recurso à violência, desrespeito ao poder
Judiciário e à Constituição democrática? Houve quem apostasse que sim.
Os últimos meses
demonstram que não. Moderar o bolsonarismo não passa de pensamento desejoso de
quem gostaria de ver uma direita republicana como alternativa decente de poder
no país. A aliança com Donald Trump e
o apoio à chantagem tarifária imposta ao Brasil são provas de que, para o
bolsonarismo, não há limite intransponível —mesmo ao custo da soberania e da
economia nacionais.
O que Trump impõe ao
Brasil é algo que nenhuma democracia pode aceitar: que o governo interfira no
Judiciário para resgatar um réu acusado de crimes graves contra a ordem
republicana. Não se trata da vontade de Lula, do STF ou
do Congresso.
Trata-se de algo que simplesmente não pode ser feito. Que país soberano cederia
à chantagem de abrir mão de sua autonomia e de anular um dos três Poderes em
troca de um desconto nos tributos imperiais de Trump?
Quando Tarcísio,
Zema, Nikolas
Ferreira e deputados bolsonaristas aceitam essa exigência como
legítima, estão endossando que o Brasil se comporte como vassalo dos Estados
Unidos. Estão dizendo que a Constituição e os Poderes
da República são negociáveis, desde que sirvam ao projeto de salvação
de Bolsonaro.
Se Trump pode decidir que
o Executivo
brasileiro deve arrancar um acusado das mãos da Justiça, porque o
julga um "good guy", e que os juízes da nossa Corte é que devem ser
punidos —e não Bolsonaro—, em que nos distinguimos de um Estado fantoche,
manipulado por um tirano estrangeiro poderoso?
Se o bolsonarismo
considera legítimo e decente que Trump use tarifas como instrumento político
para conseguir nada menos que desrespeitar a nossa Constituição, o que mais da
nossa soberania ficaria de fora do alcance do seu arbítrio? Eleições?
Legislação? Governo? Diplomacia? Políticas públicas?
Se o imperador não ficar
satisfeito com o tributo pago ou com a recusa do país em ceder às suas
exigências, o que virá em seguida? Negará vistos? Congelará bens? Estabelecerá
um embargo? Invadirá o país, como já há bolsonarista pedindo? Mandará tropas ou
mísseis? Qual é o seu limite para obter o que quiser pela força —e até onde o
bolsonarismo admite que o país se curve?
E se um presidente que
Trump desaprove ganhar a eleição de 2026? E se o Congresso aprovar uma lei que
contrarie sua vontade ou se uma decisão judicial não for do seu agrado? E se
o Banco
Central estabelecer um procedimento (o Pix,
por exemplo) que considere prejudicial aos interesses americanos?
Preocupa-me menos Trump e
mais os que, aqui no país, defendem a justeza de suas ações. É justamente essa
aprovação sem qualquer escrúpulo que demonstra que o bolsonarismo resiste a ser
assimilado à normalidade democrática.
Ele não aceita o jogo
democrático —apenas o utiliza como meio. Quando necessário, o sabota. Quando
possível, tenta destruí-lo. Seu compromisso não é com o país, mas com um culto
autoritário aos próprios interesses. E, como toda seita fanática, não reconhece
limites para proteger seu messias.
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