domingo, 19 de outubro de 2025

Vento de proa na diplomacia, por Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

Toda identidade é uma ilusão que produz efeitos reais, demarcatórios, com eventual papel político num contexto opressivo

Obsessão com marcadores (cor, religião, gênero) é autodefesa regressiva de vozes minoritárias

Para uma parcela atenta da comunidade afro-brasileira, foi auspiciosa a entrega das credenciais do diplomata Silvio Albuquerque como novo embaixador brasileiro ao rei Filipe da Bélgica. Em princípio, uma cerimônia protocolar.

Entretanto, reiteração histórica de meados do século 19, quando o baiano Francisco Jê Acaiaba Montezuma credenciou-se como ministro plenipotenciário (embaixador) junto ao Império Britânico. Um descompasso revelador: foram necessários dois séculos para que um homem negro voltasse a representar o Brasil num país europeu.

Nesse longo intervalo houve a nomeação de Raymundo Souza Dantas por Jânio Quadros (1961) para embaixador em Gana. Não era diplomata de carreira. A amargura pontua seu balanço do périplo africano: "Procuram criar toda espécie de obstáculos em meu caminho, dificultando ainda mais o desempenho de funções que já são difíceis por natureza (...) Sei que não conto com quem quer seja no Brasil, que no Itamarati não tenho cobertura, que o presidente da República nem se lembra de suas Missões em África, que ninguém nos atribui importância."

Isso é racismo: espelhamento social do sonho elitista de uma sociedade com povo uno e depurado da "mancha da escravidão" (expressão de Ruy Barbosa). Na tradição "estética" da seleção para a carreira diplomática, a regra interna era a imagem do Brasil como país de "belos homens brancos", palavras do Barão do Rio Branco, o patrono. A regra foi depois modulada por raça como obstáculo à visibilidade aceitável. Deslocou-se feiura para cor da pele.

Nenhum identitarismo nos dois episódios, em que agora o passado se projeta positivamente no presente. Francisco Jê era homem público de elevada formação acadêmica, pertencente à elite negra no Segundo Reinado. Sílvio Albuquerque, intelectual da nova geração, teve desempenho notável à frente da embaixada do Brasil no Quênia, a maior economia da África Oriental e Central. Não precisaram de legitimação identitária para o reconhecimento oficial de suas altas competências.

Isso suscita ponderação. Toda identidade é uma ilusão que produz efeitos reais, demarcatórios, com eventual papel político num contexto opressivo. Mas a obsessão com marcadores (cor, religião, gênero, nação) é autodefesa regressiva de vozes minoritárias, um bunker sem pontes. A fixação num único critério cultural paralisa o pensamento crítico. Detrás dessa ilusão, entretanto, podem agitar-se a realidade e o etos de uma justa luta civil, não subsumida à luta de classes, pois esse conceito não esgota o de relação racial. É quando identidade funciona como degrau tático.

Dessa movimentação emancipatória surgiram os compromissos assinados pelo Brasil na Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban, na África do Sul, em 2001. Igualmente, políticas de ação afirmativa. É luta necessária porque a dimensão racista do poder se expande no mesmo passo da política de direita. Daí a relevância dos ventos de diversidade na visibilidade externa, quando o Brasil mostra a sua cara. Um tapa no pacto machista de branquitude em torno do STF: é a vez da mulher!

 

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