segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Argentina: quando o fracasso sustenta a identidade política, por Marcus André Melo

Folha de S. Paulo

A trajetória do peronismo e do radicalismo revela um país onde a identidade pesa mais que o desempenho

Milei virou o jogo: conta com base ampla, quórum para veto presidencial e recursos para negociar com governadores

É lugar-comum afirmar que o Brasil não é para amadores. O que dizer, então, da Argentina? Uma das frases mais célebres sobre o país — ou sobre sua tragédia— é atribuída a Simon Kuznets, prêmio Nobel de Economia em 1971: "Existem quatro tipos de países no mundo: desenvolvidos, subdesenvolvidos, o Japão e a Argentina".

A eleição de um libertário em um país marcado pelo intervencionismo estatal e pela instabilidade fiscal não deveria surpreender. Situações de crises recorrentes tendem a produzir respostas políticas radicais. O feito, no entanto, não é apenas individual. O partido La Libertad Avanza (LLA) saltou de 14% para 41% das cadeiras na Câmara. Três fatores foram decisivos: a mais baixa taxa de comparecimento às urnas em quatro décadas (67%), apesar do voto obrigatório; o swap cambial de US$ 20 bilhões (R$ 107 bilhões) de Trump; e a promessa do presidente dos EUA de descontinuar apoio se Milei viesse a perder. O peronismo foi amplamente derrotado. Como alternativa era ainda pior.

A trajetória do declínio argentino é inseparável da história do peronismo. Juan Domingo Perón foi ministro e vice-presidente durante o regime militar (1943–1945), eleito presidente em 1946, reeleito em 1951 e deposto em 1955, ele retornou ao poder em 1973, falecendo em 1974. A radicalidade de seu movimento expressou-se na rejeição à democracia representativa e na mobilização social agressiva. Não por acaso, Seymour Martin Lipset classificou o peronismo como "fascismo de esquerda" em "Political Man: The Social Bases of Politics" (1960).

O peronismo estruturou de modo duradouro a política argentina e seus efeitos ainda se refletem nos resultados eleitorais recentes, como destaca Andrés Malamud. A geografia do voto em Milei revela padrões consistentes com essa trajetória histórica.

Após a redemocratização de 1983, peronistas e radicais alternaram-se no poder, período que se iniciou com Raúl Alfonsín, da União Cívica Radical (UCR). Nas últimas duas décadas, entretanto, essa lógica foi substituída pela ascensão de novos partidos. Como sintetiza Malamud, "o que muda é a ideologia interna do peronismo e o partido externo do não peronismo. É este último que mantém uma identidade que muda de instrumento [partidário] ao longo do tempo".

Enquanto o peronismo se deslocou radicalmente para a esquerda sob os Kirchners, o campo não peronista viu surgir alternativas à UCR, em processo comparável ao declínio do PSDB no Brasil —primeiro com o PRO de Mauricio Macri e, agora, com Milei. Isso explica as vitórias recentes em redutos historicamente ligados à UCR, já que as bases sociais do mileísmo se concentram no campo não peronista, com exceção parcial do eleitorado jovem.

A imagem de Malamud é certeira: "o peronismo continua existindo porque fracassou; o radicalismo deixou de existir porque teve sucesso." Enquanto os radicais desempenharam papel decisivo na redemocratização e na consolidação institucional, os peronistas mantêm um voto essencialmente identitário, resistente apesar dos reiterados fracassos.

Milei virou o jogo e ganhou tempo: conta com quórum para veto presidencial, base ampla e —seu calcanhar de aquiles— recursos para negociar com governadores.

 

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