O Globo
O tiroteio começa, o tempo se dissolve. O
coração acelera, o corpo reage antes da mente. Cada disparo é uma prece muda
para voltar vivo
Ele ajusta o colete como quem veste uma
armadura velha demais. O tecido não o protege há muito tempo, apenas tenta
segurar os pedaços da alma que ficaram pelo caminho. Na parede, o mapa da
operação: linhas, setas, nomes de comunidades.
Enquanto o comandante fala, ele pensa em
casa. Na esposa, que tenta dormir fingindo que o barulho do zíper da mochila
não é presságio. No filho, que ainda pergunta por que o pai trabalha em
horários malucos, ao contrário dos outros pais da escola.
— Pra proteger as pessoas — ele respondeu um
dia.
E até hoje tenta acreditar nisso.
Há um misto de emoções que se embaralham antes de cada operação. O brio de quem acredita, nem que seja por um instante, que pode fazer a diferença. O medo — sempre o medo — de não voltar. E o cansaço, aquele que vem de saber que já esteve em outras dezenas de ações parecidas — e que, no fundo, nada muda. “Enxugar gelo”, ele pensa, e o termo lhe dá um nó na garganta. Ao mesmo tempo, sabe que não é possível deixar essas facções fazerem tantas atrocidades como bem entenderem.
O briefing termina. No rádio, a voz metálica
determina o início da ação. Ele respira fundo. Sabe que um gatilho errado pode
custar tudo: a carreira, o sustento, a própria vida. E que, se algo der errado,
o nome que vai para o noticiário será o dele — não o de quem ordenou a
operação, nem o de quem deixou faltar prevenção, escola, política pública. É
mais fácil cobrar do homem que aperta o gatilho que do Estado que fabricou a
cena.
O caveirão avança pelas ruas estreitas. Nas
janelas, cortinas se fecham. Em algum lugar, uma senhora empurra o carrinho de
mate, como fazia na quarta passada, no Maracanã. Ele ainda guarda a foto dela
no celular — tirou para mostrar ao filho que a vida pode sempre ser muito dura.
Uma mulher pequena, costas arqueadas, carregando um barril da bebida.
— É dessas pessoas de quem tenho pena — falou
consigo mesmo. — Não por escolha, mas por necessidade, elas vivem no meio da
guerra.
Ele não generaliza. Aprendeu, depois de 15
anos, que há muito mais vida nas comunidades do que se imagina nos gabinetes.
Gente boa, trabalhadora, que sofre tanto com o poder paralelo quanto com as
balas perdidas das operações. É por elas que ele insiste em acreditar — mesmo
que tudo pareça desabar.
Quando o tiroteio começa, o tempo se
dissolve. O coração acelera, o corpo reage antes da mente. Cada disparo é uma
prece muda para voltar vivo. Quando o silêncio enfim volta, ele não sente
vitória — sente um vazio. Pensa no que mudou. Talvez nada. Talvez tudo.
No fim do dia, o uniforme volta para o
armário. O colete, pesado como sempre. Ele se olha no espelho e vê o mesmo
homem de ontem: um policial comum tentando sobreviver dentro de uma cidade que
também sangra — e que, no fundo, ele ainda sonha em salvar.
Na semana passada, apareceram inúmeros
especialistas com tantas respostas prontas que eu, Irapuã, preferi ouvir quem
está na linha de frente. A resposta?
— Somos apenas mais um número para o Estado
e, às vezes, nos sentimos assim também. Morremos e, no dia seguinte, tudo está
do mesmo jeito.
Infelizmente, do jeito que está hoje, trata-se de uma guerra sem vencedores.

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