segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Operações em primeira pessoa, por Irapuã Santana

O Globo

O tiroteio começa, o tempo se dissolve. O coração acelera, o corpo reage antes da mente. Cada disparo é uma prece muda para voltar vivo

Ele ajusta o colete como quem veste uma armadura velha demais. O tecido não o protege há muito tempo, apenas tenta segurar os pedaços da alma que ficaram pelo caminho. Na parede, o mapa da operação: linhas, setas, nomes de comunidades.

Enquanto o comandante fala, ele pensa em casa. Na esposa, que tenta dormir fingindo que o barulho do zíper da mochila não é presságio. No filho, que ainda pergunta por que o pai trabalha em horários malucos, ao contrário dos outros pais da escola.

— Pra proteger as pessoas — ele respondeu um dia.

E até hoje tenta acreditar nisso.

Há um misto de emoções que se embaralham antes de cada operação. O brio de quem acredita, nem que seja por um instante, que pode fazer a diferença. O medo — sempre o medo — de não voltar. E o cansaço, aquele que vem de saber que já esteve em outras dezenas de ações parecidas — e que, no fundo, nada muda. “Enxugar gelo”, ele pensa, e o termo lhe dá um nó na garganta. Ao mesmo tempo, sabe que não é possível deixar essas facções fazerem tantas atrocidades como bem entenderem.

O briefing termina. No rádio, a voz metálica determina o início da ação. Ele respira fundo. Sabe que um gatilho errado pode custar tudo: a carreira, o sustento, a própria vida. E que, se algo der errado, o nome que vai para o noticiário será o dele — não o de quem ordenou a operação, nem o de quem deixou faltar prevenção, escola, política pública. É mais fácil cobrar do homem que aperta o gatilho que do Estado que fabricou a cena.

O caveirão avança pelas ruas estreitas. Nas janelas, cortinas se fecham. Em algum lugar, uma senhora empurra o carrinho de mate, como fazia na quarta passada, no Maracanã. Ele ainda guarda a foto dela no celular — tirou para mostrar ao filho que a vida pode sempre ser muito dura. Uma mulher pequena, costas arqueadas, carregando um barril da bebida.

— É dessas pessoas de quem tenho pena — falou consigo mesmo. — Não por escolha, mas por necessidade, elas vivem no meio da guerra.

Ele não generaliza. Aprendeu, depois de 15 anos, que há muito mais vida nas comunidades do que se imagina nos gabinetes. Gente boa, trabalhadora, que sofre tanto com o poder paralelo quanto com as balas perdidas das operações. É por elas que ele insiste em acreditar — mesmo que tudo pareça desabar.

Quando o tiroteio começa, o tempo se dissolve. O coração acelera, o corpo reage antes da mente. Cada disparo é uma prece muda para voltar vivo. Quando o silêncio enfim volta, ele não sente vitória — sente um vazio. Pensa no que mudou. Talvez nada. Talvez tudo.

No fim do dia, o uniforme volta para o armário. O colete, pesado como sempre. Ele se olha no espelho e vê o mesmo homem de ontem: um policial comum tentando sobreviver dentro de uma cidade que também sangra — e que, no fundo, ele ainda sonha em salvar.

Na semana passada, apareceram inúmeros especialistas com tantas respostas prontas que eu, Irapuã, preferi ouvir quem está na linha de frente. A resposta?

— Somos apenas mais um número para o Estado e, às vezes, nos sentimos assim também. Morremos e, no dia seguinte, tudo está do mesmo jeito.

Infelizmente, do jeito que está hoje, trata-se de uma guerra sem vencedores.

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