segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Entrevista |Operação no Rio faz parte de projeto totalitário de extrema direita, diz pesquisador da violência, por André Fontenelle

Folha de S. Paulo

Para Gabriel Feltran, brasileiro que leciona no SciencesPo, elite cedeu poder a seu 'setor jagunço'

Segundo ele, igualar-se aos torturadores do CV não é saída para construção de Estado civilizado

operação policial de 28 de outubro no Rio de Janeiro tem um aspecto inédito, além da escala de mortos sem precedentes: o planejamento político. É a visão do pesquisador brasileiro Gabriel Feltran, 49, diretor de pesquisas do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS) e professor do SciencesPo, uma das principais instituições de ensino de ciências sociais da Europa.

Sociólogo do crime, Feltran estuda há mais de 20 anos a violência urbana no Brasil e o conflito entre Estado e crime organizado. Para ele, a narrativa que enxerga uma faxina contra o suposto narcoterrorismo, apoiada por youtubers e ex-policiais convertidos em comentaristas de TV, fomenta um projeto totalitário.

Esse projeto, segundo ele, já controla governos estaduais, legislativos e parte do Judiciário, faltando apenas controlar o STF (Supremo Tribunal Federal). "E não parece que vai demorar para que isso se realize."

Para Feltran, "igualar-se aos torturadores do Comando Vermelho, com espadas e decapitações, não parece ser uma boa saída para a construção de um Estado civilizado".

O sr. estuda há décadas a violência urbana. Dentro dessa perspectiva de longo prazo, que reflexão o ocorrido no Rio de Janeiro na terça-feira (28) lhe inspira?
O episódio pode parecer muito repetitivo, porque são repetitivos os massacres nas favelas, mas essa repetição esconde o que há nele de inédito e mais relevante. A parte repetitiva é o evento letal organizado, cuja escala vem aumentando, que termina eliminando operadores baixos do universo criminal: soldados rasos ou pequenos varejistas, cujas posições são prontamente substituídas. Morrem também policiais de baixa patente, igualmente substituídos cinicamente no dia seguinte.

Isso é recorrente, e não apenas ineficaz. Esse ciclo é extremamente produtivo para alimentar a militarização dos dois lados da pretensa guerra, que tem ampliado enormemente a necessidade de "mercados de proteção", cujo lucro converge, vejamos bem, para os mesmos dirigentes policiais corrompidos que dizem combater o crime organizado. Os mesmos que enviam seus soldados para morrerem no front.

Mas o que é inédito é mais relevante para entender o Brasil. Em primeiro lugar, é inédita a escala dessa chacina policial, a maior da história do Brasil, superando até mesmo o Carandiru. Mas sobretudo é inédito o planejamento político, e a resposta dos que a planejaram, orientada não apenas por marqueteiros políticos, mas pelos operadores centrais do campo da extrema direita.

Não há mais tabu em reivindicar explicitamente, e em linguagem popular, o sucesso fulgurante da atrocidade mais cruel. Governantes e secretários inflamados, unidos em uma espécie de gozo doentio, mostraram-se para as câmeras ao final da operação.

Governadores de outros cinco estados manifestaram imediatamente sua cumplicidade política, acolhida na grande imprensa e na opinião pública dominante como uma organização legítima, que em seguida leva adiante sua proposição legislativa imediata de exceção: garantir na lei o extermínio já praticado, transformando qualquer um que seja qualificado como traficante ou membro do crime organizado em "terrorista".

Basta essa classificação para que se amplie enormemente o contingente das pessoas expostas ao extermínio sumário, em institucionalidade que protege sua fachada democrática. Assim os "narcopesquisadores", os "narcojornalistas" e o "narcopresidente" podem igualmente ter o mesmo destino dos "narcoterroristas" mortos na favela.

Essa retaguarda política, jurídica, institucional, essa cumplicidade dos órgãos de controle como o Ministério Público, que deveriam ser os primeiros a flagrar as ilegalidades evidentes desses eventos, bem como desse novo marketing eleitoral escrito com sangue, é inédita em escala nacional.

Ela representa sociologicamente a transição evidente de um movimento totalitário, cuja expansão venho descrevendo há alguns anos em ensaios recentes, para um conjunto de práticas totalitárias de governo. Saímos do segundo para o terceiro tomo das "Origens do Totalitarismo", de Hannah Arendt.

Vejamos: a extrema direita já governa os principais estados do país, controla a Câmara e o Senado, a maioria das casas legislativas estaduais e municipais, além de ser amplamente hegemônica na área da justiça e segurança, inclusive em plano federal. Controla as forças da ordem e é plenamente aceita no universo das finanças.

Culturalmente, consolidou a representação de que direitos humanos são uma idiotice e que sociólogos defendem bandido. Falta apenas controlar o STF para que seu projeto se consolide plenamente, e não parece que vai demorar para que isso se realize.

Por que a guerra entre Estado e crime organizado parece viver períodos de aparente calmaria interrompidos por episódios de explosão da violência?
Esses massacres são eventos críticos, pensados para reordenar a rotina, posterior e cotidiana, sobretudo dos acordos financeiros rotineiros entre polícia e crime nas favelas, mas hoje também para muito além delas.

Depois dessa demonstração de força e legitimidade, pode-se cobrar mais no cotidiano para vender proteção ilegal aos traficantes ou legal às classes médias e às elites. Os mercados de corrupção são hoje milionários, e quem já prestou serviços a policiais corrompidos, como médicos e advogados, sabe que eles costumam pagar em espécie.

Por outro lado, investigações na imprensa mostram empreendimentos de lavagem de dinheiro tão sofisticados na polícia quanto os das facções, mas operados agora por policiais corrompidos. Essas operações aumentam a capacidade de extorsão nos mercados ilegais, porque essa guerra é em última instância por essas riquezas, por esse dinheiro que depois pode se converter não apenas em lucro privado, mas em projeto de poder coletivo.

É esse projeto que anima o movimento político de extrema direita, que tem como núcleo duro a politização autonomista das polícias e, sobretudo, das polícias militares. Controlar as armas é fundamental para uma transição de regime político, não para produzir um golpe, mas para produzir uma rotina de dominação total. Esse projeto veio, nos últimos anos, testando os efeitos jurídicos, políticos e midiáticos de se fabricar um regime de exceção.

Começaram com mortes no varejo: um membro de facção, um rapaz que se parece com ele, um favelado ligado ao tráfico morto durante a campanha para governador. Depois passamos a 13 mortos numa chacina aqui, 26 ali em Varginha, 28 no Jacarezinho, e em todos os testes esse projeto de uso da força institucional foi bem sucedido.

Seus ideólogos descobriram que havia retaguarda no Ministério Público, nos órgãos de controle estaduais, na mídia dominante, na opinião pública das redes sociais, construída por seus próprios robôs. Passaram a falar o que pensam de maneira mais desinibida, a praticar o extermínio de maneira mais direta e tiveram likes suficientes para outros os imitarem.

Elegeram ano passado um vice-prefeito [Mello Araújo, do PL, coronel da reserva da PM] acusado por oito homicídios [em serviço; ele disse não contar mortes], na cidade mais rica do país. Colocaram antes, na Secretaria de Segurança do estado mais rico do país, um policial [Guilherme Derrite, do PP] acusado por 16 mortes [em serviço; ele disse publicamente que "matou muito ladrão"], mas que reivindica publicamente muito mais: nenhum problema.

Pautaram a Lei Orgânica das Polícias, e mesmo uma PEC da Segurança, para construir seu grande projeto: uma Polícia Militar federal coordenada pelas Forças Armadas, que imponha um projeto total às hoje distintas polícias estaduais. A medida tem sido defendida, pasmem, mesmo à esquerda. Destituíram então a cúpula da PM mais relevante do país, no que parecia uma ousadia enorme. Não houve consequência relevante.

Esses ideólogos da extrema direita se sentiram, então, fortes o suficiente para alimentar o ciclo político de transformação social com mais sangue. O marqueteiro do governador do Rio de Janeiro se apressou, após o massacre, a comemorar sua virtude em ocupar, com Cláudio Castro (PL), o que ele chamou de um "espaço vazio" na política do Rio, a do matador de bandido. Detalhe, o rapaz começa sua entrevista dizendo que não aceita cinismo na política.

Críticos da ação do governo fluminense apontam que operações como essa são ineficazes no sentido de erradicar o crime organizado. É como o sr. vê a questão?
Não, elas não resolvem nada para a segurança ou a defesa do Estado de Direito, elas fazem exatamente o oposto disso, há 40 anos. Essa violência se pensa limpando a sociedade e já era aplaudida em rituais totalitários nas redes sociais, mas hoje é também celebrada nas instituições e na imprensa.

O problema é que, nesse ciclo vicioso, essa limpeza nunca se realiza. Ao contrário, o que vemos é muita sujeira, muitos resíduos vivos caindo de um corpo social fraturado: sentimentos de ódio, sede de vingança e radicalização, traumas de familiares e vítimas de violência criminal e um novo ciclo de violências se retroalimentando.

Politicamente, esses eventos abrem espaço para a propaganda populista voltada para massas sedentas por paz, que no entanto acreditam na guerra sangrenta como meio. Décadas de operações desse tipo, no Rio de Janeiro, ampliaram a militarização dos mercados ilegais, a corrupção policial sistêmica e a ação faccional, mas quem se lembra do que houve no Carandiru, no Jacarezinho, em Paraisópolis?

O problema não diminui, ele aumenta a cada nova volta dessa engrenagem, com mais corrida armamentista e mais ampliação das economias de proteção aos ilegalismos, que vão bem, obrigado, geridos por ladrões profissionais e policiais corrompidos.

Quanto mais falham em entregar segurança, mais os agentes ideológicos da segurança pedem recursos para fazê-la melhor, seja na esfera privada, seja controlando mais e mais fatias do orçamento.

Recebem a bênção das elites instaladas, cada vez mais próximas aos policiais, que então cedem esses recursos num ciclo orçamentário sem fim. Produzir sua propaganda e ganhar as massas é fundamental para garantir a legitimidade desse regime de poder, e passam a investir nisso. Assim se produziram os grandes etnocídios historicamente, assim se produziram os totalitarismos desde os anos 1930. Caminhamos para isso a passos largos no Brasil, e esse projeto parece bem aceito das periferias às novas elites emergentes.

Outra crítica aponta que a operação teria, como em casos anteriores, um viés racista e elitista. O sr. vê assim?
Não há uma intenção consciente e expressa, por parte dos policiais, de representar as elites brancas contra o mundo popular, negro e pobre. Não se trata disso. Esses policiais se sentem agindo autonomamente contra bandidos, contra o crime, no que acreditam ser uma limpeza dos maus do mundo, que parece não se dar conta de que ao fazê-lo, eles mesmos se tornam os assassinos.

Carregarão com eles essas marcas, claro. Mais de 200 policiais se suicidaram no ano passado, no Brasil. Muitos policiais militares, e militarizados, vêm das próprias classes populares, de territórios de pobreza, muitos também racializados.

Sobre o racismo e o elitismo, o que ocorre é um efeito social muito perverso, a partir de um choque de mundos cognitivos: a polícia se vê como promotora de mobilidade social de jovens pobres e negros, porque os têm em seus quadros, mas os resultados letais das operações atingem invariavelmente esse mesmo perfil. Pelo fato de serem os jovens negros e pobres os mais recrutados para a operação baixa dos mercados ilegais, das economias criminais.

Sociologicamente, isso produz efeitos racistas e elitistas evidentes, demonstrados em qualquer estatística de prisão, letalidade policial ou criminalidade. Mas os policiais ideologizados evidentemente não reconhecem esses dados assim.

Eles oferecem a chave para quem pensa por correlações básicas, sem nunca ter pisado numa favela, e que naturaliza a ideia de que o perfil pobre, jovem, racializado, sem escolaridade é, verbo ser, "o bandido" a combater. É então que uma segunda camada do racismo elitista desses massacres aparece no cotidiano: as pessoas que compartilham esse perfil, homem-jovem-racializado-favelado, serão potencialmente criminalizadas mesmo não tendo nada a ver com o crime. Isso se radicaliza a tal ponto que há os que se regozijam ao ver esses corpos empilhados nas vielas, crivados de balas.

Como o sr. enxerga a guerra de narrativas entre os que apontam a operação como "bem-sucedida" ou como puramente "letal"?
A narrativa de "faxina" é pura propaganda totalitária, mas há narrativas mais sofisticadas, de ex-policiais famosos nos canais voltados para a classe média, que vão exatamente na mesma direção política.

E há os acadêmicos que pretensamente veem o "outro lado", defendendo tacitamente a "flexibilização" do regime democrático para combater o crime. Há portanto um regime de discursos que tem no centro marqueteiros e youtubers, mas na margem intelectuais orgânicos desse movimento totalitário, dando munição cultural para os que convertem violência em capital político-eleitoral.

Engana-se, aliás, quem se limita a ver cálculo eleitoral na tragédia, como se cada governador, secretário ou youtuber agisse em benefício próprio e num evento independente. Isso existe, mas compondo um projeto de poder em processo de institucionalização cotidiana há duas décadas, em igrejas, partidos, redes, no Executivo, Legislativo, e Judiciário, em níveis municipal, estadual e federal, cujo objetivo evidente é romper com um modo de conceber o Estado democrático, romper com suas intermediações e normalizar a exceção, agora protegida não apenas pelos operadores instalados na institucionalidade, mas pelas instituições elas mesmas.

Até que ponto o ocorrido é um problema com especificidades cariocas ou é um problema nacional, ou similar ao de outros estados brasileiros?
É evidentemente um projeto político nacional, que encontra no Rio sua quintessência. E um projeto ideológico internacional, ligado a um movimento totalitário igualmente internacional, com rosto particularmente militarizado no Brasil. A segurança pública tornou-se a arena central de poder no Brasil contemporâneo, basta notar que todas nossas figuras políticas fortes que emergiram nas últimas duas décadas vêm desse campo: Bolsonaro e seus policiais, Temer, Xandão, Dino, Derrite e outros.

Em São Paulo e no Rio, mas também em outros estados, vemos o mesmo padrão: a ascensão de policiais matadores de rua a gestores da segurança, a eliminação de controles institucionais, o alinhamento com interesses da segurança privada e do achaque aos fundos públicos para financiar lucros privados e projeto comum da política, posto em marcha com as tecnologias aprendidas no achaque aos mercados ilegais.

Estamos vivendo uma mudança política muito relevante, na qual os setores que chamo de jagunços, os que antigamente eram apenas operadores da violência bruta para as elites, se autonomizam delas mesmas e impõem sua forma de governar pelo terror. Nossas elites tradicionais são tão ineptas, e tão incapazes de perceber o processo social em transformação, que sequer conseguem notar o risco ao qual estão expostas nesse processo.

Que soluções o sr. apontaria?
Uma política de segurança eficaz no Brasil partiria de quatro eixos, dependentes do reconhecimento de que o modelo hoje existente contribui para a insegurança, quando não para o terror. O primeiro eixo seria o Estado recuper sua autoridade para esclarecer homicídios, fundamento da retomada da soberania sobre o uso da força, com investimento consistente em investigação e responsabilização. A prioridade na elucidação de mortes e a responsabilização de quem mata é a retomada da capacidade soberana da lei sobre os matadores de plantão. Assim, em segida, como segunda medida, reduziria-se o poder armado ilegal, estatal e não estatal, reafirmando a centralidade da lei e não a autonomia de grupos armados, policiais e criminais.

O terceiro eixo é estabelecer regulação rigorosa sobre mercados ilegais, como os de drogas e armas, no modelo feito com o desmanche veicular em São Paulo. Reduzir o poder econômico que sustenta facções e milícias, mas também as polícias corrompidas.

Combater facções, nesse cenário, não significaria ampliar operações bélicas, mas retirar sua base financeira e capacidade de recrutamento. Em seguida, como quarto eixo, seriam fortalecidos o controle externo e social das polícias, garantindo transparência, responsabilização e aderência ao Estado democrático de Direito. Pode parecer utópico, mas existe em muitos países. Sem isso, a política de segurança continuará a se converter em capital político para uma classe emergente de jagunços promovida, hoje, à elite política.

Nas áreas que vivem sob o jugo das facções, há relatos de tortura e violência. Isso não justificaria uma ação mais decisiva contra o crime organizado?
Sem dúvida. O Comando Vermelho tem territórios controlados por armas no Rio há 40 anos, não há nada de novo. Como as ações que listei, que deveriam estar sendo feitas há décadas. Igualar-se aos torturadores do CV, com espadas e decapitações, não parece ser uma boa saída para a construção de um Estado civilizado.

É a fórmula para a barbárie, hoje aplaudida socialmente. A questão é que se a lei não imperar sobre a força bruta de grupos autônomos, como a que vimos dos dois lados dessa operação, perde-se o centro da construção estatal. Resta a guerra de milícias fora da lei, fardadas ou não. As ações de uma política pública de segurança que mereça esse nome foram decisivas em muitos países hoje democráticos e seguros. É delas que precisamos.

Como o sr. vê as ameaças que pesquisadores da violência têm sofrido no Brasil?
No Brasil, fazer pesquisa na segurança é se expor à violência política. Mas não vinda do crime, veja o absurdo. São os policiais ideologizados os que nos coagem. A questão é que a segurança é vista como guerra, não como uma área de política pública, na qual cabe debate e cabem argumentos lógicos, indicadores, evidências.

É como se fosse uma guerra moral: heróis versus bandidos. Então os policiais que estão inflamados por essa ideologia nefasta não se sentem operadores de uma política, garantidores de direitos. Eles se sentem salvando a sociedade dos maus, e só aceitam dois lados: o bajulador que os louva, ou o inimigo que devem abater.

Desprezam o conhecimento e têm fetiche por armas de fogo, blindados e caveiras. Não entregam segurança para ninguém, mas não aceitam ser avaliados como qualquer operador de política pública.

Tenho sido chamado para discutir meus resultados de pesquisa pelas forças de segurança na França, em Portugal, na Holanda, nos EUA, nos Balcãs, mas no Brasil é raríssimo. No Rio e em São Paulo, sobretudo, reina a militarização ideologizada, que por projeção quer nos ver como ideólogos.

*Pesquisador brasileiro no Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), na França. Sociólogo especialista em crime organizado, é professor do SciencesPo, uma das principais instituições de ensino superior de ciências humanas e sociais da Europa. É autor, entre outros livros, de "Irmãos: Uma História do PCC" (Companhia das Letras, 2018)

Nenhum comentário: