segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A Elite da Tropa e os Atos dos Apóstolos à procura da Frente Democrática, por Vagner Gomes

O pecado de Pilatos foi que, quando poderia ter salvado nosso Salvador de uma morte injusta, permitiu que a inocência caísse, com base em acusações contraditórias entre si e contrárias a estranhas revelações celestiais, e proferiu a sentença de morte, apenas para satisfazer uma multidão sedenta de sangue. Mas, de outra forma, foi o caso de meu Lorde de Strafford, pois ali o Rei não era o único juiz, aliás, era incapaz de julgar, e o delinquente fora legalmente condenado, tendo sido provadas acusações tão hediondas contra ele que seus maiores amigos se envergonharam de justificá-las, e todos os homens imparciais de três reinos inteiros as consideravam mortais; e, portanto, o Rei poderia, com a consciência limpa, ter assinado uma ordem de execução, embora discordasse da sentença. Assim, se um juiz no mesmo tribunal discordar de três, ou um jurado no tribunal discordar de onze, eles podem submeter-se à maioria, embora talvez menos hábeis do que eles próprios, sem imputação de culpa; e se assim é em matéria de Direito, com mais razão ainda é em matéria de Estado, onde a própria satisfação de uma multidão, por vezes em coisas que de outra forma não seriam convenientes, pode revelar-se não só conveniente, mas necessária para o estabelecimento da paz e o fim da discórdia. Por exemplo: Foi um pedido de todo o Reino, reunido no Parlamento, ao Rei, que confiasse as Milícias e o Depósito de Armas de Hull, etc., a pessoas que gozassem da boa estima do povo. A consciência e o entendimento nada poderiam alegar contra isso, e se pudesse ter sido afirmado (como foi).

Henry Parker (1604-1652). Observações sobre algumas das respostas e expressões recentes de Sua Majestade, 1842.

As revoluções burguesas foram marcadas por muita violência, como a polarização anglo-saxã entre “Cabeças redondas” e “Cabeças pontudas” nos fez relembrar um contexto de Guerra Civil onde muitos se viram impulsionados por doutrinas e debates sobre a liberdade da fé. O século XVII, na Inglaterra, nos faz compreender muito do contexto em que Hobbes destacou que “um dos deveres básicos do Estado é impedir que você invada os direitos de ação de seus concidadãos, um dever que ele cumpre pela imposição da força coercitiva da lei sobre todos igualmente.” (SKINNER, p. 18).

Abre-se assim uma hipótese de que a “Nápoles carioca” dos segmentos cada vez mais à margem dos compromissos com as relações sociais de produção diante de uma “multidão” de trabalhadores circunscritos à informalização da vida econômica e social se encontra com aquela Londres do século da Revolução Gloriosa onde as classes subalternas estariam à procura de um Lorde Protetor como Oliver Cromwell (1599 – 1658), que encerrou a vida decapitado. A “nova” Revolução Puritana que se expande na periferia carioca ainda não recebeu uma atenção não preconceituosa de muitos acadêmicos. 

Nossos caminhos restauradores, com suas doses barrocas, se manifestam nas recentes pesquisas da ATLAS e DATAFOLHA sobre a chamada Megaoperação nos Complexos do Alemão e da Penha, em outubro de 2025. Não nos deixemos turvar nossas reflexões pelos atalhos de uma teoria política que bloqueia um diálogo sobre a liberdade e a democracia com segmentos conservadores. Seria por essa perspectiva que a leitura do livro Elite da Tropa (2006) seria de grande contribuição para além de ficar circunscrito numa postura do “ativismo do discurso”, pois necessitamos de lideranças formadas e capacitadas para compreender a natureza do transformismo que está ocorrendo na criminalidade brasileira (sobretudo a carioca), como demonstra a série “Os Donos do Jogo”, na Netflix.

Os cariocas celebraram a vitória de “Ainda estou Aqui” ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro – que condena a brutalidade e a tortura –, porém, no seu cotidiano, as forças democráticas do Renascimento deixam cair a máscara de um mundo moldado no “Leviatã”. Elite da Tropa não impactou tanto quanto o filme “Tropa de Elite” (2007) onde os éticos personagens Matias e Neto foram eclipsados pelo Capitão Nascimento que seria uma espécie de um porta-voz da antipolítica. Não confiar na instituição Polícia Militar é o ponto de partida para se justificar os exageros do Capitão no mundo ficcional. Livro e filme surgiram nos tempos do questionamento ético do “Mensalão”. Tínhamos então as evidências de uma sociedade fraturada e inorgânica que foi cada vez mais empurrada para a hegemonia das forças retrógradas. 

“Atirar na cabeça” foi uma senha da sociedade nas eleições fluminenses em 2018. Não podemos nos deixar iludir que os fatores e condicionantes desse quadro se modificaram favoravelmente por conta das vitórias liberais na Capital, Niterói e algumas cidades. Os níveis de desqualificação das instituições democráticas na sociedade seriam enormes até entre segmentos do campo da esquerda. Um mosaico de “narrativas” colocaram a defesa do Amor de uma tentativa de Frente Democrática nas eleições presidenciais de 2022 num plano secundário. Outra vez o “mundo do consumo” foi o foco deixando de lado a relevância do “mundo dos direitos”.

As origens do cristianismo na ocupação militar da Judeia pelo Império Romano se expressa numa interpretação do livro Atos dos Apóstolos. Conhecer a história do cristianismo como um pensamento de perdão é muito importante nesse momento em que alguns que deviam celebrar a vida estão aplaudindo a morte. Sabemos que tempos de fé se constroem no exercício de um testemunho. Portanto, dois parlamentares negros e evangélicos de matrizes políticas distintas convergiram na crítica aos eventos da Megaoperação. A Deputada Federal Benedita da Silva em sua fala para as mães e as lágrimas (debochadas por alguns em um insano ato de desumana falta de educação) soma-se ao Deputado Federal e Pastor Otoni de Paula que não se deixou seduzir pelo “atalho” do oportunismo sobre o tema e clama por uma melhor abordagem sobre o tema da violência. Portanto, ampliar a Frente Democrática de 2022 é uma necessidade que nos obriga a levar a “ética da responsabilidade” a sério na prática da política.

Referência bibliográfica:

SKINNER, Quentin. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: UNESP, 1999.

*Vagner Gomes é Doutorando em Ciência Política no PPGCP-UNIRIO.

 

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