Folha de S. Paulo
A luta de grupos minorizados pelo
reconhecimento de suas vozes passa por sujeitos visíveis no espaço comum
Um eleitorado sem voz tem a mesma fajuta
consistência política da escultura invisível do italiano espertalhão
Deu no jornal que o italiano Salvatore Garau produziu uma escultura invisível, já vendida pelo equivalente a R$ 80 mil. O comprador tem à disposição apenas um suporte sem nada por cima, mas leva para casa o "espírito" e a assinatura do autor. É algo bizarro, mas pouco surpreendente no rol das extravagâncias que há muito tempo fazem o espetáculo nas galerias de arte em todo o mundo. Na verdade, a arte moderna é principalmente avaliada pela subjetividade do artista, materializada em sua valiosa assinatura.
O singular na experiência desse italiano é
que ele faz dinheiro com invisibilidade: "Não vendi o nada, mas um vácuo
cheio de energia". O comprador tem consciência de que paga por algo
imaterial, mas como se ali estivesse presente o germe de uma invenção social e
cultural, portanto, outra marca civilizatória, latente no invisível da
sociedade, seu espírito. O fato é que a experiência social ultrapassa os
aspectos sensíveis da vida comum, atribuindo significações a coisas
potencialmente acolhidas pelo imaginário coletivo.
O fenômeno sugere alcance mais extenso. Numa
pesquisa recente da ONG paulista More in Common sobre a polarização
no Brasil, descobriu-se que a maioria da população (54%) é
formada por dois segmentos, classificados como "invisíveis", que não
têm posições extremas nem o menor grau de engajamento político. Os extremos,
progressistas ou direitistas, são estridentes, logo, visíveis. Já os invisíveis
não querem ver nem serem vistos, seu estatuto lógico é o do
"um-qualquer", cujo lugar de fala dispensa a mediação, garantindo-se
por si mesmo. É a natureza do conhecimento gerado pela rede eletrônica.
De fato, quando você informa algo a alguém, a
sua fala tem de ser confiável, portanto, o dito precisa ser garantido por
escuta e fala de outro. Se você é um-qualquer, a informação pode até ser
operativa na prática. Mas, legitimada apenas pelo próprio falante, não pertence
ao conhecimento consensual, que exige o reconhecimento implícito dos pares. Sem
isso, o lugar de fala do um-qualquer fragmenta a confiança, logo, a credibilidade.
É a realidade da internet.
Como razão própria, o escultor Garau
provavelmente se apoiaria em sua frase de que "o vazio é uma forma de
presença". Mas quando se trata da plenitude inerente à vida democrática,
essa invisibilidade é socialmente disruptiva. É o que agora acontece no Brasil,
onde a governança paralela e invisível das facções criminosas organizadas
assusta a nação.
Na esfera pública, visibilidade funda a
prática política. Basta ver Trump, uma
hipervisibilidade midiática acima de partidos apagados. A luta
das minorias pelo reconhecimento de suas vozes passa por sujeitos visíveis no
espaço comum. Na falta disso, um eleitorado sem cara nem voz (54%), manipulado
por financistas, bets mafiosas, extremistas, igrejas bilionárias e algoritmos,
tem a mesma fajuta consistência política da escultura invisível do italiano
espertalhão. Um corpo parasitado por aliens invisíveis
("narcoterrorismo", comunismo etc.) que a extrema direita inventa e
finge combater.

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