segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Carta branca para o invisível, por Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

A luta de grupos minorizados pelo reconhecimento de suas vozes passa por sujeitos visíveis no espaço comum

Um eleitorado sem voz tem a mesma fajuta consistência política da escultura invisível do italiano espertalhão

Deu no jornal que o italiano Salvatore Garau produziu uma escultura invisível, já vendida pelo equivalente a R$ 80 mil. O comprador tem à disposição apenas um suporte sem nada por cima, mas leva para casa o "espírito" e a assinatura do autor. É algo bizarro, mas pouco surpreendente no rol das extravagâncias que há muito tempo fazem o espetáculo nas galerias de arte em todo o mundo. Na verdade, a arte moderna é principalmente avaliada pela subjetividade do artista, materializada em sua valiosa assinatura.

O singular na experiência desse italiano é que ele faz dinheiro com invisibilidade: "Não vendi o nada, mas um vácuo cheio de energia". O comprador tem consciência de que paga por algo imaterial, mas como se ali estivesse presente o germe de uma invenção social e cultural, portanto, outra marca civilizatória, latente no invisível da sociedade, seu espírito. O fato é que a experiência social ultrapassa os aspectos sensíveis da vida comum, atribuindo significações a coisas potencialmente acolhidas pelo imaginário coletivo.

O fenômeno sugere alcance mais extenso. Numa pesquisa recente da ONG paulista More in Common sobre a polarização no Brasil, descobriu-se que a maioria da população (54%) é formada por dois segmentos, classificados como "invisíveis", que não têm posições extremas nem o menor grau de engajamento político. Os extremos, progressistas ou direitistas, são estridentes, logo, visíveis. Já os invisíveis não querem ver nem serem vistos, seu estatuto lógico é o do "um-qualquer", cujo lugar de fala dispensa a mediação, garantindo-se por si mesmo. É a natureza do conhecimento gerado pela rede eletrônica.

De fato, quando você informa algo a alguém, a sua fala tem de ser confiável, portanto, o dito precisa ser garantido por escuta e fala de outro. Se você é um-qualquer, a informação pode até ser operativa na prática. Mas, legitimada apenas pelo próprio falante, não pertence ao conhecimento consensual, que exige o reconhecimento implícito dos pares. Sem isso, o lugar de fala do um-qualquer fragmenta a confiança, logo, a credibilidade. É a realidade da internet.

Como razão própria, o escultor Garau provavelmente se apoiaria em sua frase de que "o vazio é uma forma de presença". Mas quando se trata da plenitude inerente à vida democrática, essa invisibilidade é socialmente disruptiva. É o que agora acontece no Brasil, onde a governança paralela e invisível das facções criminosas organizadas assusta a nação.

Na esfera pública, visibilidade funda a prática política. Basta ver Trump, uma hipervisibilidade midiática acima de partidos apagados. A luta das minorias pelo reconhecimento de suas vozes passa por sujeitos visíveis no espaço comum. Na falta disso, um eleitorado sem cara nem voz (54%), manipulado por financistas, bets mafiosas, extremistas, igrejas bilionárias e algoritmos, tem a mesma fajuta consistência política da escultura invisível do italiano espertalhão. Um corpo parasitado por aliens invisíveis ("narcoterrorismo", comunismo etc.) que a extrema direita inventa e finge combater.

 

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