Amartya Sen
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / + MAIS!
Mais Importante teórico do mercado, economista escocês também defendeu o papel do Estado para proteger os pobres, diz Prêmio Nobel
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / + MAIS!
Mais Importante teórico do mercado, economista escocês também defendeu o papel do Estado para proteger os pobres, diz Prêmio Nobel
Exatamente 90 anos atrás, em março de 1919, diante de mais uma crise econômica, Vladimir Lênin discutiu as dificuldades do capitalismo contemporâneo. Mas não quis escrever um epitáfio: "É um erro acreditar que não há saída da atual crise do capitalismo". Essa expectativa de Lênin, ao contrário de outras que ele teve, provou estar correta.
Apesar de os mercados americano e europeu terem enfrentado mais problemas na década de 1920, seguidos da Grande Depressão dos anos 1930, no longo prazo, após o fim da Segunda Guerra [1939-45], a economia de mercado foi excepcionalmente dinâmica e gerou uma expansão sem precedentes da economia global nos últimos 60 anos.
Não mais, pelo menos neste momento. A crise econômica global ganha velocidade em ritmo assustador, e as tentativas dos governos de contê-la tiveram muito pouco sucesso, apesar da aplicação sem precedentes de fundos públicos. A pergunta que surge de maneira mais premente hoje não é tanto sobre o fim do capitalismo, mas sim sobre a natureza do capitalismo e a necessidade de mudança.
O que é preciso?
Nós realmente precisamos de um "novo capitalismo", que carregue de uma maneira significativa a bandeira do capitalismo, em vez de um sistema econômico não-monolítico que utilize uma variedade de instituições escolhidas de forma pragmática e valores que podemos defender racionalmente?
Devemos buscar um novo capitalismo ou um "novo mundo" que não precise assumir uma forma capitalista especializada? Essa não é a única pergunta que enfrentamos hoje, mas eu diria que é a mesma pergunta que o fundador da economia moderna, Adam Smith [1723-1790], realmente fez no século 18, quando apresentou sua análise pioneira do funcionamento da economia de mercado. Smith nunca usou o termo "capitalismo" (pelo menos até onde eu pude verificar), e também seria difícil extrair de suas obras uma teoria sobre a suficiência da economia de mercado ou da necessidade de aceitar a predominância do capital. Ele falou sobre o importante papel de valores mais amplos para escolher comportamentos, assim como sobre a importância das instituições, em "A Riqueza das Nações".
Mas foi em seu primeiro livro, "Teoria dos Sentimentos Morais", publicado há exatamente 250 anos, que ele investigou intensamente o poderoso papel dos valores não ligados ao lucro.
Enquanto afirmou que a "prudência" era "de todas as virtudes a que é mais útil para o indivíduo", Smith argumentou que "humanidade, justiça, generosidade e espírito público são as qualidades mais úteis para os outros".
Fora do mercado
O que é exatamente capitalismo? A definição-padrão parece depender dos mercados para transações econômicas como qualificação necessária para uma economia ser considerada capitalista.
De maneira semelhante, as exigências da intenção de lucro e dos direitos individuais com base na propriedade privada são vistas como características arquetípicas do capitalismo.
No entanto, se esses são requisitos necessários, os sistemas econômicos que temos atualmente, por exemplo, na Europa e na América, são genuinamente capitalistas?
Todos os países afluentes do mundo -os da Europa, assim como EUA, Canadá, Japão, Cingapura, Coreia do Sul, Taiwan, Austrália e outros- dependem há algum tempo de transações que ocorrem basicamente fora dos mercados, como benefícios de desemprego, pensões públicas e outros elementos da seguridade social, além da provisão pública de educação escolar e assistência à saúde.
O digno desempenho dos sistemas supostamente capitalistas em épocas em que houve verdadeiras realizações foi baseado em uma combinação de instituições que ia muito além de uma mera economia de mercado com vistas a maximizar os lucros.
Muitas vezes se esquece que Smith não via o puro mecanismo do mercado como um ator isolado de excelência e tampouco considerava que a intenção de lucro fosse tudo o que era necessário.
Talvez o maior erro esteja em interpretar a discussão limitada de Smith sobre por que as pessoas buscam o comércio como uma análise exaustiva de todas as normas comportamentais e instituições que ele considerava necessárias para uma economia de mercado funcionar bem.
As pessoas buscam o comércio por causa do interesse próprio -nada mais é necessário, como Smith discutiu em uma declaração que é citada repetidamente, explicando por que os padeiros, cervejeiros, açougueiros e consumidores buscam o comércio. Mas uma economia precisa de outros valores e compromissos, como a confiança mútua, para funcionar com eficiência.
Por exemplo, Smith argumentou: "Quando as pessoas de um determinado país têm tal confiança na fortuna, probidade e prudência de um determinado banqueiro, a ponto de acreditar que ele está sempre disposto a pagar sob demanda suas notas promissórias que podem lhe ser apresentadas a qualquer momento, essas notas passam a ter o mesmo valor que o dinheiro de ouro e prata, pela confiança de que esse dinheiro pode a qualquer momento ser havido por elas".
Quebra de confiança
Ele explicou por que esse tipo de confiança nem sempre existe. Apesar de os defensores da leitura padeiro-cervejeiro-açougueiro de Smith consagrada em muitos livros de economia poderem ter dificuldade para compreender a atual crise (as pessoas ainda têm muitos bons motivos para buscar mais comércio, apenas menos oportunidades), as consequências no longo prazo da suspeita e da desconfiança nos outros -que contribuíram para gerar esta crise e tornam tão difícil uma recuperação- não o teriam surpreendido.
De fato, houve muito boas razões para a desconfiança e a quebra de segurança que levaram a esta crise. As obrigações e responsabilidades associadas às transações se tornaram nos últimos anos muito mais difíceis de localizar, graças ao rápido desenvolvimento de mercados secundários envolvendo derivativos e outros instrumentos financeiros.
Isso ocorreu em uma época em que a grande disponibilidade de crédito, conduzida em parte pelos enormes superávits comerciais de algumas economias, sobretudo a China, ampliou a escala de operações ousadas.
Um credor de subprime que levou um mutuário a assumir riscos insensatos podia transmitir os instrumentos financeiros a outras partes distantes da transação original. A necessidade de supervisão e regulamentação tornou-se muito mais forte nos últimos anos.
No entanto, o papel supervisor do governo, em particular nos EUA, foi, no mesmo período, reduzido acentuadamente, alimentado por uma fé crescente na natureza autorregulatória da economia de mercado. Exatamente enquanto crescia a necessidade de vigilância do Estado, diminuía a provisão dessa supervisão necessária.
Essa vulnerabilidade institucional tem implicações não apenas para práticas astutas, mas também para uma tendência à superespeculação, que, como afirmou Smith, costuma acometer muitos seres humanos em sua busca incansável por lucros. Smith chamou esses promotores de riscos excessivos em busca de lucros de "pródigos e projetores".
A fé implícita na sabedoria da economia de mercado autossuficiente, que é amplamente responsável pela remoção dos regulamentos estabelecidos nos EUA, tendeu a reforçar as atividades de pródigos e projetores de uma maneira que teria chocado o expoente pioneiro dos fundamentos da economia de mercado.
Apesar de tudo o que Smith fez para explicar e defender o papel construtivo do mercado, ele se preocupava profundamente com a incidência da pobreza, o analfabetismo e a privação relativa que poderiam permanecer, mesmo em uma economia de mercado em bom funcionamento.
Ele queria diversidade institucional e variedade motivacional, e não mercados monolíticos e a predominância singular da intenção de lucro. Smith foi não apenas um defensor do papel do Estado para fazer as coisas que o mercado poderia deixar de fazer -como a educação universal e a ajuda aos pobres.
Mas também defendeu, em geral, opções institucionais de acordo com os problemas que surgem, em vez de se ancorarem as instituições a uma fórmula fixa -como deixar tudo a cargo do mercado.
Reavaliação
Eu diria que as dificuldades econômicas de hoje não pedem um "novo capitalismo", mas exigem uma compreensão esclarecida de antigas ideias sobre o alcance e os limites da economia de mercado.
O que é necessário, acima de tudo, é uma clara avaliação de como funcionam as diferentes instituições, juntamente com uma compreensão de como diversas organizações -do mercado às instituições do Estado- podem contribuir juntas para produzir um mundo econômico mais decente.
Amartya Sen é professor de economia e filosofia na Universidade Harvard. Recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 1998. A íntegra deste texto foi publicada no "Financial Times". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .
Apesar de os mercados americano e europeu terem enfrentado mais problemas na década de 1920, seguidos da Grande Depressão dos anos 1930, no longo prazo, após o fim da Segunda Guerra [1939-45], a economia de mercado foi excepcionalmente dinâmica e gerou uma expansão sem precedentes da economia global nos últimos 60 anos.
Não mais, pelo menos neste momento. A crise econômica global ganha velocidade em ritmo assustador, e as tentativas dos governos de contê-la tiveram muito pouco sucesso, apesar da aplicação sem precedentes de fundos públicos. A pergunta que surge de maneira mais premente hoje não é tanto sobre o fim do capitalismo, mas sim sobre a natureza do capitalismo e a necessidade de mudança.
O que é preciso?
Nós realmente precisamos de um "novo capitalismo", que carregue de uma maneira significativa a bandeira do capitalismo, em vez de um sistema econômico não-monolítico que utilize uma variedade de instituições escolhidas de forma pragmática e valores que podemos defender racionalmente?
Devemos buscar um novo capitalismo ou um "novo mundo" que não precise assumir uma forma capitalista especializada? Essa não é a única pergunta que enfrentamos hoje, mas eu diria que é a mesma pergunta que o fundador da economia moderna, Adam Smith [1723-1790], realmente fez no século 18, quando apresentou sua análise pioneira do funcionamento da economia de mercado. Smith nunca usou o termo "capitalismo" (pelo menos até onde eu pude verificar), e também seria difícil extrair de suas obras uma teoria sobre a suficiência da economia de mercado ou da necessidade de aceitar a predominância do capital. Ele falou sobre o importante papel de valores mais amplos para escolher comportamentos, assim como sobre a importância das instituições, em "A Riqueza das Nações".
Mas foi em seu primeiro livro, "Teoria dos Sentimentos Morais", publicado há exatamente 250 anos, que ele investigou intensamente o poderoso papel dos valores não ligados ao lucro.
Enquanto afirmou que a "prudência" era "de todas as virtudes a que é mais útil para o indivíduo", Smith argumentou que "humanidade, justiça, generosidade e espírito público são as qualidades mais úteis para os outros".
Fora do mercado
O que é exatamente capitalismo? A definição-padrão parece depender dos mercados para transações econômicas como qualificação necessária para uma economia ser considerada capitalista.
De maneira semelhante, as exigências da intenção de lucro e dos direitos individuais com base na propriedade privada são vistas como características arquetípicas do capitalismo.
No entanto, se esses são requisitos necessários, os sistemas econômicos que temos atualmente, por exemplo, na Europa e na América, são genuinamente capitalistas?
Todos os países afluentes do mundo -os da Europa, assim como EUA, Canadá, Japão, Cingapura, Coreia do Sul, Taiwan, Austrália e outros- dependem há algum tempo de transações que ocorrem basicamente fora dos mercados, como benefícios de desemprego, pensões públicas e outros elementos da seguridade social, além da provisão pública de educação escolar e assistência à saúde.
O digno desempenho dos sistemas supostamente capitalistas em épocas em que houve verdadeiras realizações foi baseado em uma combinação de instituições que ia muito além de uma mera economia de mercado com vistas a maximizar os lucros.
Muitas vezes se esquece que Smith não via o puro mecanismo do mercado como um ator isolado de excelência e tampouco considerava que a intenção de lucro fosse tudo o que era necessário.
Talvez o maior erro esteja em interpretar a discussão limitada de Smith sobre por que as pessoas buscam o comércio como uma análise exaustiva de todas as normas comportamentais e instituições que ele considerava necessárias para uma economia de mercado funcionar bem.
As pessoas buscam o comércio por causa do interesse próprio -nada mais é necessário, como Smith discutiu em uma declaração que é citada repetidamente, explicando por que os padeiros, cervejeiros, açougueiros e consumidores buscam o comércio. Mas uma economia precisa de outros valores e compromissos, como a confiança mútua, para funcionar com eficiência.
Por exemplo, Smith argumentou: "Quando as pessoas de um determinado país têm tal confiança na fortuna, probidade e prudência de um determinado banqueiro, a ponto de acreditar que ele está sempre disposto a pagar sob demanda suas notas promissórias que podem lhe ser apresentadas a qualquer momento, essas notas passam a ter o mesmo valor que o dinheiro de ouro e prata, pela confiança de que esse dinheiro pode a qualquer momento ser havido por elas".
Quebra de confiança
Ele explicou por que esse tipo de confiança nem sempre existe. Apesar de os defensores da leitura padeiro-cervejeiro-açougueiro de Smith consagrada em muitos livros de economia poderem ter dificuldade para compreender a atual crise (as pessoas ainda têm muitos bons motivos para buscar mais comércio, apenas menos oportunidades), as consequências no longo prazo da suspeita e da desconfiança nos outros -que contribuíram para gerar esta crise e tornam tão difícil uma recuperação- não o teriam surpreendido.
De fato, houve muito boas razões para a desconfiança e a quebra de segurança que levaram a esta crise. As obrigações e responsabilidades associadas às transações se tornaram nos últimos anos muito mais difíceis de localizar, graças ao rápido desenvolvimento de mercados secundários envolvendo derivativos e outros instrumentos financeiros.
Isso ocorreu em uma época em que a grande disponibilidade de crédito, conduzida em parte pelos enormes superávits comerciais de algumas economias, sobretudo a China, ampliou a escala de operações ousadas.
Um credor de subprime que levou um mutuário a assumir riscos insensatos podia transmitir os instrumentos financeiros a outras partes distantes da transação original. A necessidade de supervisão e regulamentação tornou-se muito mais forte nos últimos anos.
No entanto, o papel supervisor do governo, em particular nos EUA, foi, no mesmo período, reduzido acentuadamente, alimentado por uma fé crescente na natureza autorregulatória da economia de mercado. Exatamente enquanto crescia a necessidade de vigilância do Estado, diminuía a provisão dessa supervisão necessária.
Essa vulnerabilidade institucional tem implicações não apenas para práticas astutas, mas também para uma tendência à superespeculação, que, como afirmou Smith, costuma acometer muitos seres humanos em sua busca incansável por lucros. Smith chamou esses promotores de riscos excessivos em busca de lucros de "pródigos e projetores".
A fé implícita na sabedoria da economia de mercado autossuficiente, que é amplamente responsável pela remoção dos regulamentos estabelecidos nos EUA, tendeu a reforçar as atividades de pródigos e projetores de uma maneira que teria chocado o expoente pioneiro dos fundamentos da economia de mercado.
Apesar de tudo o que Smith fez para explicar e defender o papel construtivo do mercado, ele se preocupava profundamente com a incidência da pobreza, o analfabetismo e a privação relativa que poderiam permanecer, mesmo em uma economia de mercado em bom funcionamento.
Ele queria diversidade institucional e variedade motivacional, e não mercados monolíticos e a predominância singular da intenção de lucro. Smith foi não apenas um defensor do papel do Estado para fazer as coisas que o mercado poderia deixar de fazer -como a educação universal e a ajuda aos pobres.
Mas também defendeu, em geral, opções institucionais de acordo com os problemas que surgem, em vez de se ancorarem as instituições a uma fórmula fixa -como deixar tudo a cargo do mercado.
Reavaliação
Eu diria que as dificuldades econômicas de hoje não pedem um "novo capitalismo", mas exigem uma compreensão esclarecida de antigas ideias sobre o alcance e os limites da economia de mercado.
O que é necessário, acima de tudo, é uma clara avaliação de como funcionam as diferentes instituições, juntamente com uma compreensão de como diversas organizações -do mercado às instituições do Estado- podem contribuir juntas para produzir um mundo econômico mais decente.
Amartya Sen é professor de economia e filosofia na Universidade Harvard. Recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 1998. A íntegra deste texto foi publicada no "Financial Times". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .
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