DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
A eleição de Lula como presidente, em 2002, foi interpretada como equivalendo a uma verdadeira refundação da história brasileira. Como sugeriu Francisco de Oliveira, ela seria comparável a acontecimentos como a Abolição, a Proclamação da República e a Revolução de 1930, com a diferença de que, com a vitória do PT, os dominados teriam se tornado, pela primeira vez, protagonistas de nossa política.
Depois de oito anos de governo Lula, poucos ainda entendem sua eleição como uma ruptura. Mesmo assim, as análises mais interessantes da política brasileira atual procuram precisamente interpretar o significado do governo do PT.
Luiz Werneck Vianna sugeriu, pouco depois da reeleição de Lula, que seu governo correspondia, ironicamente, a uma reconciliação com a história política do País. Se o PT havia nascido vinculado a leituras críticas do Brasil, especialmente no que se refere à subalternidade que teria marcado a relação da sociedade civil com o Estado, a prática do seu governo não corresponderia a essas interpretações.
Mais especificamente, a crítica ao populismo teria sido fundamental nos primeiros anos do PT, período durante o qual o partido procurou organizar autonomamente a classe trabalhadora. No entanto, algo similar ao Estado de compromisso, que caracterizaria o pós-1930, teria reaparecido no governo Lula. Nas duas situações, forças sociais contraditórias conviveriam no governo - como a burguesia industrial e o operariado, o agrobusiness e o MST -, o chefe do Poder Executivo comportando-se como uma espécie de árbitro que se colocaria acima delas.
Em termos práticos, a representação funcional de interesses voltaria a ganhar importância para além do Parlamento. Em termos de discurso se recuperariam muitos dos temas do nacional-desenvolvimentismo, em particular a imagem do Estado como indutor do desenvolvimento.
Oliveira, igualmente depois da reeleição de Lula, passou a caracterizar o governo do PT como uma "hegemonia às avessas". Assim como na África do Sul do pós-apartheid, os dominados teriam assumido a direção moral, mas não a direção intelectual da sociedade. Isto é, nas duas situações se manteriam políticas neoliberais, com a vantagem de elas passarem a ser conduzidas por políticos e partidos com as histórias de Mandela e de Lula, do CNA e do PT.
Em outras palavras, não faria grande diferença que os dominados estivessem à frente do Estado, já que eles seriam incapazes de lhe imprimirem uma nova orientação. Quando muito, o que se teria seria a incorporação de políticas de transferência de renda, que serviriam para despolitizar, se não funcionalizar a questão da pobreza.
Em termos mais profundos, os dominantes poderiam consentir em serem conduzidos pelos dominados, até porque os últimos já não questionariam a dominação, o consentimento como que passando a dispensar o recurso à força.
Mais recentemente, André Singer tem argumentado que entre a primeira eleição de Lula e sua reeleição houve um deslocamento de seu eleitorado. O candidato do PT teria perdido terreno entre seus eleitores tradicionais, identificados com os setores organizados da sociedade, mas teria compensado essa perda ao passar a ser bem votado por um eleitorado de "baixíssima renda", uma espécie de subproletariado. Concomitantemente com a decepção da classe média com o governo, por causa de escândalos como o "mensalão", uma parcela significativa da sociedade teria sido beneficiada pela expressiva redução da pobreza.
Num sentido mais amplo, o subproletariado aceitaria a intervenção do Estado na economia, mas temeria a mudança brusca da ordem social. Ou seja, o governo Lula, com sua combinação de política econômica ortodoxa e investimento em programas sociais, teria afinidade com a orientação de eleitores de "baixíssima renda". Mas o subproletariado, tal como o campesinato, analisado por Marx em O 18 Brumário, seria incapaz de se fazer representar politicamente, dependendo de uma força que viesse do alto, o Estado.
As interpretações de Werneck Vianna, Oliveira e Singer sobre o governo Lula não são necessariamente contraditórias. As diferenças entre elas dizem respeito mais a ênfases variadas do que a argumentos inconciliáveis.
É verdade que Werneck Vianna acentua a continuidade entre o governo Lula e a história política brasileira, ao passo que Oliveira e Singer ressaltam a novidade do momento atual - especialmente a "hegemonia às avessas" e a representação do subproletariado. Mesmo assim, é possível argumentar que a mudança na base eleitoral de Lula pode favorecer, por exemplo, a reaparição de formas políticas associadas ao chamado populismo. No mesmo sentido, pode-se defender que a representação do subproletariado não exclui a "hegemonia às avessas". Até porque vivemos, desde o fim do "socialismo real", uma situação em que a hegemonia do capital já não é questionada em parte alguma do mundo.
É particularmente interessante como Werneck Vianna e Singer ressaltam como, nos últimos oito anos, o Estado ganhou autonomia diante da sociedade civil. Mais do que uma novidade na história brasileira, tal autonomia representa uma mudança na orientação (societária) do PT. Junto com ela, ganha importância a figura do presidente. Em especial, é Lula que é capaz de servir de árbitro entre interesses conflitantes e falar diretamente com o subproletariado.
Nesse sentido, a principal questão que se coloca para o período pós-Lula é: alguém será capaz de assumir seu lugar, desempenhando os papéis que o atual presidente realiza tão bem? Em outras palavras, vivemos o problema da transferência do carisma...
É professor do departamento de Ciência Política da USP
A eleição de Lula como presidente, em 2002, foi interpretada como equivalendo a uma verdadeira refundação da história brasileira. Como sugeriu Francisco de Oliveira, ela seria comparável a acontecimentos como a Abolição, a Proclamação da República e a Revolução de 1930, com a diferença de que, com a vitória do PT, os dominados teriam se tornado, pela primeira vez, protagonistas de nossa política.
Depois de oito anos de governo Lula, poucos ainda entendem sua eleição como uma ruptura. Mesmo assim, as análises mais interessantes da política brasileira atual procuram precisamente interpretar o significado do governo do PT.
Luiz Werneck Vianna sugeriu, pouco depois da reeleição de Lula, que seu governo correspondia, ironicamente, a uma reconciliação com a história política do País. Se o PT havia nascido vinculado a leituras críticas do Brasil, especialmente no que se refere à subalternidade que teria marcado a relação da sociedade civil com o Estado, a prática do seu governo não corresponderia a essas interpretações.
Mais especificamente, a crítica ao populismo teria sido fundamental nos primeiros anos do PT, período durante o qual o partido procurou organizar autonomamente a classe trabalhadora. No entanto, algo similar ao Estado de compromisso, que caracterizaria o pós-1930, teria reaparecido no governo Lula. Nas duas situações, forças sociais contraditórias conviveriam no governo - como a burguesia industrial e o operariado, o agrobusiness e o MST -, o chefe do Poder Executivo comportando-se como uma espécie de árbitro que se colocaria acima delas.
Em termos práticos, a representação funcional de interesses voltaria a ganhar importância para além do Parlamento. Em termos de discurso se recuperariam muitos dos temas do nacional-desenvolvimentismo, em particular a imagem do Estado como indutor do desenvolvimento.
Oliveira, igualmente depois da reeleição de Lula, passou a caracterizar o governo do PT como uma "hegemonia às avessas". Assim como na África do Sul do pós-apartheid, os dominados teriam assumido a direção moral, mas não a direção intelectual da sociedade. Isto é, nas duas situações se manteriam políticas neoliberais, com a vantagem de elas passarem a ser conduzidas por políticos e partidos com as histórias de Mandela e de Lula, do CNA e do PT.
Em outras palavras, não faria grande diferença que os dominados estivessem à frente do Estado, já que eles seriam incapazes de lhe imprimirem uma nova orientação. Quando muito, o que se teria seria a incorporação de políticas de transferência de renda, que serviriam para despolitizar, se não funcionalizar a questão da pobreza.
Em termos mais profundos, os dominantes poderiam consentir em serem conduzidos pelos dominados, até porque os últimos já não questionariam a dominação, o consentimento como que passando a dispensar o recurso à força.
Mais recentemente, André Singer tem argumentado que entre a primeira eleição de Lula e sua reeleição houve um deslocamento de seu eleitorado. O candidato do PT teria perdido terreno entre seus eleitores tradicionais, identificados com os setores organizados da sociedade, mas teria compensado essa perda ao passar a ser bem votado por um eleitorado de "baixíssima renda", uma espécie de subproletariado. Concomitantemente com a decepção da classe média com o governo, por causa de escândalos como o "mensalão", uma parcela significativa da sociedade teria sido beneficiada pela expressiva redução da pobreza.
Num sentido mais amplo, o subproletariado aceitaria a intervenção do Estado na economia, mas temeria a mudança brusca da ordem social. Ou seja, o governo Lula, com sua combinação de política econômica ortodoxa e investimento em programas sociais, teria afinidade com a orientação de eleitores de "baixíssima renda". Mas o subproletariado, tal como o campesinato, analisado por Marx em O 18 Brumário, seria incapaz de se fazer representar politicamente, dependendo de uma força que viesse do alto, o Estado.
As interpretações de Werneck Vianna, Oliveira e Singer sobre o governo Lula não são necessariamente contraditórias. As diferenças entre elas dizem respeito mais a ênfases variadas do que a argumentos inconciliáveis.
É verdade que Werneck Vianna acentua a continuidade entre o governo Lula e a história política brasileira, ao passo que Oliveira e Singer ressaltam a novidade do momento atual - especialmente a "hegemonia às avessas" e a representação do subproletariado. Mesmo assim, é possível argumentar que a mudança na base eleitoral de Lula pode favorecer, por exemplo, a reaparição de formas políticas associadas ao chamado populismo. No mesmo sentido, pode-se defender que a representação do subproletariado não exclui a "hegemonia às avessas". Até porque vivemos, desde o fim do "socialismo real", uma situação em que a hegemonia do capital já não é questionada em parte alguma do mundo.
É particularmente interessante como Werneck Vianna e Singer ressaltam como, nos últimos oito anos, o Estado ganhou autonomia diante da sociedade civil. Mais do que uma novidade na história brasileira, tal autonomia representa uma mudança na orientação (societária) do PT. Junto com ela, ganha importância a figura do presidente. Em especial, é Lula que é capaz de servir de árbitro entre interesses conflitantes e falar diretamente com o subproletariado.
Nesse sentido, a principal questão que se coloca para o período pós-Lula é: alguém será capaz de assumir seu lugar, desempenhando os papéis que o atual presidente realiza tão bem? Em outras palavras, vivemos o problema da transferência do carisma...
É professor do departamento de Ciência Política da USP
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