DEU NO VALOR ECONÔMICO
Tive a satisfação de participar, na semana passada, de mesa redonda sobre "Imprensa, Estado e Crise de Representatividade", promovida pelo Centro Brasileiro de Estudos da América Latina do Memorial da América Latina e integrando seminário dedicado a "Liberdade de Imprensa e Democracia na América Latina".
O tema pode ser dividido, a meu ver, em duas dimensões entrelaçadas. A primeira é a questão crucial da liberdade de imprensa como valor, a que remete o título geral do seminário e que tem sido motivo de renovados debates no continente e especificamente no Brasil, onde iniciativas governamentais visando a algum tipo de controle da imprensa têm suscitado reações que falam de inaceitável autoritarismo. Creio que a posição equilibrada a respeito envolve, por sua vez, a consideração de duas faces.
Por um lado, é patente a importância de que se garanta o livre fluxo de comunicações e informações na sociedade, como parte do desiderato democrático de que os direitos civis sejam garantidos. Inequivocamente, nos regimes totalitários ou ditatoriais em geral, o empenho de controlar aquele fluxo se liga ao interesse em impedir que a maneira pela qual a população tende a avaliar o regime se torne transparente aos olhos de todos, eventualmente ajudando a que se difundam e fortaleçam a avaliação negativa e o ânimo de oposição a ele.
Tratar-se-ia de criar o que a literatura de psicologia social há muito designa como "ignorância pluralística", em que cada qual desconhece as disposições dos demais e os eventuais opositores são inibidos pela presunção de que se acham em minoria. Costumo evocar a propósito o slogan usado pelo MDB em eleições patrocinadas pela ditadura militar de 1964: "Vote no MDB, você sabe por quê." O "saber" a que o slogan se refere desdobra-se claramente na ideia de que as razões para ser contra o regime eram evidentes, e sugeria que "todo mundo" sabia disso e a oposição a ele seria, portanto, majoritária. Na mesma linha, como sugere o cientista político Timur Kuran ("Verdades Privadas, Mentiras Públicas", de 1995), a derrocada espetacular do comunismo no leste europeu teria tido como importante fator precipitante a súbita difusão da percepção de que o Estado aparentemente todo poderoso que se havia erigido era, na verdade, hostilizado pela ampla maioria das populações envolvidas.
Mas a outra face adverte para o perigo de que o valor da liberdade de imprensa como parte do desiderato de comunicação livre degenere, às vezes, em ideologia arrogante de uma categoria profissional. Pois a imprensa pode também surgir como ameaça aos direitos civis, em vez de instrumento de sua promoção e realização. Entre nós, exemplos algo mais remotos, como o do caso muito citado da Escola Base em São Paulo ou o de Alceni Guerra, ou mais recentes, como os lamentáveis acontecimentos em torno do julgamento dos acusados de assassinar Isabella Nardoni, evidenciam o papel negativo que a imprensa pode cumprir ao competir para oferecer ágil e profusamente o que interessa ao público. E, na precariedade e lentidão do remédio representado pela possibilidade formal do acesso à Justiça por parte das vítimas em certos casos, não há razão para supor que formas de vigilância exercidas por órgãos democraticamente compostos (e que não teriam por que redundar em censura prévia) viessem a equivaler, sem mais, a autoritarismo estatal. Afinal, aceita-se que até a Justiça deve ser submetida a controle externo.
A segunda grande dimensão do tema geral é trazida pela ideia de "representatividade" incluída no título de nossa mesa redonda. Um aspecto saliente das dificuldades a respeito surge se consideramos a "opinião pública", cuja santificação tenho criticado. Falar de uma opinião pública a que, por exemplo, os parlamentares deveriam necessariamente ajustar-se em seu comportamento é aderir a postulados "unanimistas" afins, na verdade, ao suposto consenso de apoio a regimes ditatoriais que as barreiras ao livre fluxo de comunicações e a "ignorância pluralística" ajudariam a produzir. Como observa também Timur Kuran, a democracia envolve sobretudo a sensibilidade perante a opinião privada e autêntica dos cidadãos, a ser protegida, entre outras coisas, justamente das pressões da "opinião pública".
É nesse sentido, naturalmente, que o voto secreto é uma conquista democrática.
A questão talvez decisiva aqui é a de como ver a atuação da imprensa diante do tema da representatividade de que a "opinião pública" e os postulados unanimistas envolvidos são uma faceta. Se a imprensa frequentemente molda a opinião pública, e se isso pode envolver interesses de tipos diversos (empresariais, políticos), há também ocasionalmente, sem dúvida, a pura e simples adesão pouco atenta, e talvez ingênua, a posições que os órgãos da imprensa percebem como brotando espontaneamente da "opinião pública": como entender, por exemplo, a difusa campanha da imprensa brasileira pelo voto aberto no Congresso, que omite o favorecimento à pressão de currais eleitorais e lobbies e põe de lado ideias como a da representação "virtual", de Edmund Burke, em que as pressões dos interesses particulares de determinadas bases são substituídas, nas decisões do parlamentar, pela consideração do interesse geral?
Mas o assunto é mais complicado. Pois há ainda o problema inverso, de certa forma, envolvendo a questão de uma opinião pública eventualmente minoritária, em que as posições e opiniões que a imprensa veicula e defende em particular no campo político, ajustando-se às da parcela politicamente atenta da população, se contrapõem às das parcelas majoritárias do eleitorado popular. Como a ideia de representação democrática se articulará com a de representatividade estatística que as pesquisas de opinião devem assegurar, trazendo à luz precisamente o contraste entre a opinião da maioria e a presumida opinião pública?
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Tive a satisfação de participar, na semana passada, de mesa redonda sobre "Imprensa, Estado e Crise de Representatividade", promovida pelo Centro Brasileiro de Estudos da América Latina do Memorial da América Latina e integrando seminário dedicado a "Liberdade de Imprensa e Democracia na América Latina".
O tema pode ser dividido, a meu ver, em duas dimensões entrelaçadas. A primeira é a questão crucial da liberdade de imprensa como valor, a que remete o título geral do seminário e que tem sido motivo de renovados debates no continente e especificamente no Brasil, onde iniciativas governamentais visando a algum tipo de controle da imprensa têm suscitado reações que falam de inaceitável autoritarismo. Creio que a posição equilibrada a respeito envolve, por sua vez, a consideração de duas faces.
Por um lado, é patente a importância de que se garanta o livre fluxo de comunicações e informações na sociedade, como parte do desiderato democrático de que os direitos civis sejam garantidos. Inequivocamente, nos regimes totalitários ou ditatoriais em geral, o empenho de controlar aquele fluxo se liga ao interesse em impedir que a maneira pela qual a população tende a avaliar o regime se torne transparente aos olhos de todos, eventualmente ajudando a que se difundam e fortaleçam a avaliação negativa e o ânimo de oposição a ele.
Tratar-se-ia de criar o que a literatura de psicologia social há muito designa como "ignorância pluralística", em que cada qual desconhece as disposições dos demais e os eventuais opositores são inibidos pela presunção de que se acham em minoria. Costumo evocar a propósito o slogan usado pelo MDB em eleições patrocinadas pela ditadura militar de 1964: "Vote no MDB, você sabe por quê." O "saber" a que o slogan se refere desdobra-se claramente na ideia de que as razões para ser contra o regime eram evidentes, e sugeria que "todo mundo" sabia disso e a oposição a ele seria, portanto, majoritária. Na mesma linha, como sugere o cientista político Timur Kuran ("Verdades Privadas, Mentiras Públicas", de 1995), a derrocada espetacular do comunismo no leste europeu teria tido como importante fator precipitante a súbita difusão da percepção de que o Estado aparentemente todo poderoso que se havia erigido era, na verdade, hostilizado pela ampla maioria das populações envolvidas.
Mas a outra face adverte para o perigo de que o valor da liberdade de imprensa como parte do desiderato de comunicação livre degenere, às vezes, em ideologia arrogante de uma categoria profissional. Pois a imprensa pode também surgir como ameaça aos direitos civis, em vez de instrumento de sua promoção e realização. Entre nós, exemplos algo mais remotos, como o do caso muito citado da Escola Base em São Paulo ou o de Alceni Guerra, ou mais recentes, como os lamentáveis acontecimentos em torno do julgamento dos acusados de assassinar Isabella Nardoni, evidenciam o papel negativo que a imprensa pode cumprir ao competir para oferecer ágil e profusamente o que interessa ao público. E, na precariedade e lentidão do remédio representado pela possibilidade formal do acesso à Justiça por parte das vítimas em certos casos, não há razão para supor que formas de vigilância exercidas por órgãos democraticamente compostos (e que não teriam por que redundar em censura prévia) viessem a equivaler, sem mais, a autoritarismo estatal. Afinal, aceita-se que até a Justiça deve ser submetida a controle externo.
A segunda grande dimensão do tema geral é trazida pela ideia de "representatividade" incluída no título de nossa mesa redonda. Um aspecto saliente das dificuldades a respeito surge se consideramos a "opinião pública", cuja santificação tenho criticado. Falar de uma opinião pública a que, por exemplo, os parlamentares deveriam necessariamente ajustar-se em seu comportamento é aderir a postulados "unanimistas" afins, na verdade, ao suposto consenso de apoio a regimes ditatoriais que as barreiras ao livre fluxo de comunicações e a "ignorância pluralística" ajudariam a produzir. Como observa também Timur Kuran, a democracia envolve sobretudo a sensibilidade perante a opinião privada e autêntica dos cidadãos, a ser protegida, entre outras coisas, justamente das pressões da "opinião pública".
É nesse sentido, naturalmente, que o voto secreto é uma conquista democrática.
A questão talvez decisiva aqui é a de como ver a atuação da imprensa diante do tema da representatividade de que a "opinião pública" e os postulados unanimistas envolvidos são uma faceta. Se a imprensa frequentemente molda a opinião pública, e se isso pode envolver interesses de tipos diversos (empresariais, políticos), há também ocasionalmente, sem dúvida, a pura e simples adesão pouco atenta, e talvez ingênua, a posições que os órgãos da imprensa percebem como brotando espontaneamente da "opinião pública": como entender, por exemplo, a difusa campanha da imprensa brasileira pelo voto aberto no Congresso, que omite o favorecimento à pressão de currais eleitorais e lobbies e põe de lado ideias como a da representação "virtual", de Edmund Burke, em que as pressões dos interesses particulares de determinadas bases são substituídas, nas decisões do parlamentar, pela consideração do interesse geral?
Mas o assunto é mais complicado. Pois há ainda o problema inverso, de certa forma, envolvendo a questão de uma opinião pública eventualmente minoritária, em que as posições e opiniões que a imprensa veicula e defende em particular no campo político, ajustando-se às da parcela politicamente atenta da população, se contrapõem às das parcelas majoritárias do eleitorado popular. Como a ideia de representação democrática se articulará com a de representatividade estatística que as pesquisas de opinião devem assegurar, trazendo à luz precisamente o contraste entre a opinião da maioria e a presumida opinião pública?
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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