DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
O campo das relações internacionais opera à sombra da situação-limite da guerra. Esta é, como disse Aron inspirado por Clausewitz, um camaleão: assume sempre novas formas. A capacidade destrutiva das armas nucleares produziu uma mutação qualitativa do camaleão da guerra, ao tornar viável o completo extermínio de grandes coletividades. É por esse motivo que o desarmamento nuclear e a não-proliferação nuclear de cunho militar são um grande e não resolvido tema global da agenda de segurança da vida internacional. É neste horizonte que se situam o tema da nuclearização crescente do Irã, as medidas que estão sendo negociadas no âmbito do Conselho de Segurança da ONU e as discussões sobre o papel da diplomacia brasileira neste assunto.
Na análise das relações internacionais, é usual a distinção entre idealistas e realistas. As correntes idealistas, empenhadas na paz, surgiram em razão dos horrores da guerra propiciados pela destrutividade técnica das armas. Adquiriram ressonância em razão do advento da bomba atômica. Levam em conta a indivisibilidade da paz num mundo unificado pela economia, pelas comunicações e pela técnica e partem de uma kantiana ideia reguladora da razão: no século 21 a guerra nos aponta o que é preciso temer e a paz nos indica o que temos o direito de almejar.
Maquiavel é uma das matrizes inspiradoras das correntes realistas. Estas têm o seu foco nos fatos do poder e na sua desigual distribuição entre os Estados. Realçam a preponderância do papel do conflito e da lógica da polarização num sistema internacional que retém componentes de um anárquico estado de natureza. Por isso, os realistas são críticos das ilusões idealistas e chamam a atenção para o papel estratégico da "razão de Estado" que contempla o uso da força.
Raymond Aron, em Paz e Guerra entre as Nações, examinou o papel dessas duas correntes na ação diplomática concreta. Observou que essa ação lida com a indeterminação que é fruto dos elementos singulares de cada conjuntura e da pluralidade dos objetivos das políticas externas dos Estados. Apontou que os responsáveis por uma conduta estratégico-diplomática, na sua atuação, se veem simultaneamente confrontados, na sua práxis, tanto pelo problema maquiavélico quanto pelo kantiano. O primeiro diz respeito ao realismo dos meios necessários para assegurar a independência e a sobrevivência de um Estado. O segundo está voltado para o empenho em assegurar a paz.
A Constituição brasileira, no seu artigo 4.º, ao tratar dos princípios que regem as relações internacionais do Brasil, consagra a concomitância do realismo e do idealismo. Com efeito, o inciso I afirma o realismo do valor da independência nacional e os incisos VI e VII, os valores da defesa da paz e da solução pacífica dos conflitos, cabendo acrescentar que o art. 20 (XXIII) determina que toda atividade nuclear brasileira terá, exclusivamente, fins pacíficos, excluindo, assim, as armas nucleares do escopo da conduta estratégico-diplomática brasileira.
O Brasil redemocratizado da Nova República seguiu com sucesso a vis directiva da Constituição de 1988. Terminou com o desnecessário potencial desagregador de uma corrida armamentista nuclear com a Argentina e institucionalizou a confiança mútua de controles recíprocos (Abacc). Celebrou, com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), os mecanismos de verificação comprovadores dos fins pacíficos dos projetos brasileiros na área nuclear. Contribuiu para pôr em vigor o Tratado de Tlatelolco, que proscreve as armas nucleares na América Latina. Aderiu ao Tratado de Não-Proliferação (TNP). Nenhuma dessas ações, em defesa da paz, pôs em risco a independência nacional. Esta o Brasil vem aprofundando com o investimento no soft power da credibilidade, proveniente da estabilidade econômica, da responsabilidade fiscal, das redes de proteção social, do empenho democrático, da afirmação dos direitos humanos, dos mecanismos de cooperação com os nossos muitos vizinhos e de uma consistente ação multilateral econômica na política. Isso tudo vem conferindo adensada proeminência ao nosso país no cenário internacional. Nesse contexto pergunta-se: O empenho diplomático brasileiro de abrir espaço para o Irã, cujo processo de nuclearização suscita generalizadas inquietações, faz sentido?
Realço, em primeiro lugar, que não cabe evocar como justificativas da atual posição brasileira o que se passou no Iraque em 2003. Não cabe a analogia, pois não há semelhança relevante. O Iraque de Saddam Hussein não tinha armas nucleares graças aos controles da AIEA e à eficácia das prévias sanções autorizadas pelo Conselho de Segurança; não estava desestabilizando a região e o mundo; e a intervenção militar liderada pelos EUA foi feita unilateralmente, com uma justificativa falsa, criando novas tensões que ainda não encontraram adequado encaminhamento.
No momento atual o Irã está levando a uma difusa e significativa tensão internacional. Há uma percepção generalizada - e a percepção da realidade é um componente da realidade - de que o seu programa nuclear tem ameaçadores componentes militares e que pode, assim, induzir à nuclearização militar de outros países da vizinhança; desestabilizar o precário equilíbrio geopolítico do Oriente Médio; encorajar o terrorismo internacional; subverter os regimes políticos de países vizinhos; desencadear uma nova e complexa dinâmica entre xiitas e sunitas; e tornar mais difícil a paz entre palestinos e israelenses.
Daí a óbvia pergunta: seja do ponto de vista realista, seja do ponto de vista idealista, qual é a vantagem do Brasil em alinhar-se ao Irã e legitimar as ambiguidades da sua conduta? No meu entender, nenhuma, pois essa postura está descapitalizando a credibilidade brasileira na precária busca de um ilusório prestígio, fruto de um inconsequente protagonismo internacional.
Professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi Ministro das Relações Exteriores no governo FHC
O campo das relações internacionais opera à sombra da situação-limite da guerra. Esta é, como disse Aron inspirado por Clausewitz, um camaleão: assume sempre novas formas. A capacidade destrutiva das armas nucleares produziu uma mutação qualitativa do camaleão da guerra, ao tornar viável o completo extermínio de grandes coletividades. É por esse motivo que o desarmamento nuclear e a não-proliferação nuclear de cunho militar são um grande e não resolvido tema global da agenda de segurança da vida internacional. É neste horizonte que se situam o tema da nuclearização crescente do Irã, as medidas que estão sendo negociadas no âmbito do Conselho de Segurança da ONU e as discussões sobre o papel da diplomacia brasileira neste assunto.
Na análise das relações internacionais, é usual a distinção entre idealistas e realistas. As correntes idealistas, empenhadas na paz, surgiram em razão dos horrores da guerra propiciados pela destrutividade técnica das armas. Adquiriram ressonância em razão do advento da bomba atômica. Levam em conta a indivisibilidade da paz num mundo unificado pela economia, pelas comunicações e pela técnica e partem de uma kantiana ideia reguladora da razão: no século 21 a guerra nos aponta o que é preciso temer e a paz nos indica o que temos o direito de almejar.
Maquiavel é uma das matrizes inspiradoras das correntes realistas. Estas têm o seu foco nos fatos do poder e na sua desigual distribuição entre os Estados. Realçam a preponderância do papel do conflito e da lógica da polarização num sistema internacional que retém componentes de um anárquico estado de natureza. Por isso, os realistas são críticos das ilusões idealistas e chamam a atenção para o papel estratégico da "razão de Estado" que contempla o uso da força.
Raymond Aron, em Paz e Guerra entre as Nações, examinou o papel dessas duas correntes na ação diplomática concreta. Observou que essa ação lida com a indeterminação que é fruto dos elementos singulares de cada conjuntura e da pluralidade dos objetivos das políticas externas dos Estados. Apontou que os responsáveis por uma conduta estratégico-diplomática, na sua atuação, se veem simultaneamente confrontados, na sua práxis, tanto pelo problema maquiavélico quanto pelo kantiano. O primeiro diz respeito ao realismo dos meios necessários para assegurar a independência e a sobrevivência de um Estado. O segundo está voltado para o empenho em assegurar a paz.
A Constituição brasileira, no seu artigo 4.º, ao tratar dos princípios que regem as relações internacionais do Brasil, consagra a concomitância do realismo e do idealismo. Com efeito, o inciso I afirma o realismo do valor da independência nacional e os incisos VI e VII, os valores da defesa da paz e da solução pacífica dos conflitos, cabendo acrescentar que o art. 20 (XXIII) determina que toda atividade nuclear brasileira terá, exclusivamente, fins pacíficos, excluindo, assim, as armas nucleares do escopo da conduta estratégico-diplomática brasileira.
O Brasil redemocratizado da Nova República seguiu com sucesso a vis directiva da Constituição de 1988. Terminou com o desnecessário potencial desagregador de uma corrida armamentista nuclear com a Argentina e institucionalizou a confiança mútua de controles recíprocos (Abacc). Celebrou, com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), os mecanismos de verificação comprovadores dos fins pacíficos dos projetos brasileiros na área nuclear. Contribuiu para pôr em vigor o Tratado de Tlatelolco, que proscreve as armas nucleares na América Latina. Aderiu ao Tratado de Não-Proliferação (TNP). Nenhuma dessas ações, em defesa da paz, pôs em risco a independência nacional. Esta o Brasil vem aprofundando com o investimento no soft power da credibilidade, proveniente da estabilidade econômica, da responsabilidade fiscal, das redes de proteção social, do empenho democrático, da afirmação dos direitos humanos, dos mecanismos de cooperação com os nossos muitos vizinhos e de uma consistente ação multilateral econômica na política. Isso tudo vem conferindo adensada proeminência ao nosso país no cenário internacional. Nesse contexto pergunta-se: O empenho diplomático brasileiro de abrir espaço para o Irã, cujo processo de nuclearização suscita generalizadas inquietações, faz sentido?
Realço, em primeiro lugar, que não cabe evocar como justificativas da atual posição brasileira o que se passou no Iraque em 2003. Não cabe a analogia, pois não há semelhança relevante. O Iraque de Saddam Hussein não tinha armas nucleares graças aos controles da AIEA e à eficácia das prévias sanções autorizadas pelo Conselho de Segurança; não estava desestabilizando a região e o mundo; e a intervenção militar liderada pelos EUA foi feita unilateralmente, com uma justificativa falsa, criando novas tensões que ainda não encontraram adequado encaminhamento.
No momento atual o Irã está levando a uma difusa e significativa tensão internacional. Há uma percepção generalizada - e a percepção da realidade é um componente da realidade - de que o seu programa nuclear tem ameaçadores componentes militares e que pode, assim, induzir à nuclearização militar de outros países da vizinhança; desestabilizar o precário equilíbrio geopolítico do Oriente Médio; encorajar o terrorismo internacional; subverter os regimes políticos de países vizinhos; desencadear uma nova e complexa dinâmica entre xiitas e sunitas; e tornar mais difícil a paz entre palestinos e israelenses.
Daí a óbvia pergunta: seja do ponto de vista realista, seja do ponto de vista idealista, qual é a vantagem do Brasil em alinhar-se ao Irã e legitimar as ambiguidades da sua conduta? No meu entender, nenhuma, pois essa postura está descapitalizando a credibilidade brasileira na precária busca de um ilusório prestígio, fruto de um inconsequente protagonismo internacional.
Professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi Ministro das Relações Exteriores no governo FHC
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