Uma crise financeira mundial pode ser considerada um câncer cujas metástases se manifestam por muito tempo, se não for estirpado o núcleo e suas infiltrações. O presidente Lula considerou-a, inicialmente, produtora de simples "marolinha" no Atlântico Sul. Posteriormente, foi obrigado a levá-la a sério, porém tão logo o Federal Reserve (Fed, banco central americano) socorreu o sistema bancário americano, assumiu que o câncer havia sido debelado. A presidente Dilma parece ter a mesma postura e o Brasil continua sem salvaguardas (sequer são discutidas) contra as metástases.
Na zona do euro, a doença progride de forma inexorável. Irlanda, Grécia e Portugal já foram indicados para uma "Unidade de Tratamento Intensivo (UTI)". A progressão já ameaçou a Espanha e, agora, a Itália parece estar sendo atingida. Toda a Europa está amedrontada e perplexa em relação ao modo de enfrentar a crise; França, Alemanha e Grã Bretanha apresentam propostas pouco convergentes.
No Brasil, persiste uma euforia quase ininteligível. Sofremos com a crise e, apesar da recuperação parcial, não conseguimos sequer igualar-nos ao desempenho da Argentina, que cresceu mais que o Brasil. Cada vez mais assumimos a configuração econômica de país exportador de alimentos e matérias primas. Ressurgiu o discurso de "Brasil celeiro do mundo", que se nutrirá exportando alimentos para saciar a fome do mundo. Essa autodenominação é retórica, pois existem milhões de famílias brasileiras com fome e péssima qualidade de vida. O Brasil deveria se preocupar, em primeiro lugar, com a boa alimentação dos brasileiros. Seria uma medida elementar restaurar o imposto de exportação sobre alimentos; com esse imposto, poderíamos desfrutar dos altos preços internacionais e praticar internamente preços em real menores, favorecendo os consumidores nacionais. Hoje, 80% da população é urbana e compra alimentos referenciados a taxa cambial do dólar. O governo brasileiro não tem mais estoques reguladores de suprimento interno de alimentos; quem deles dispõe são empresas que, quando monopólicas, desfrutam de vantagens excessivas. Aliás, essa é a razão do Banco Central praticar a política de juros elevados, pois dessa forma atrai capitais especulativos do exterior e valoriza o real.
Apesar da recuperação parcial, não conseguimos igualar-nos ao resultado da Argentina, que cresceu mais que o Brasil
A curto prazo, na âncora cambial repousa a política anti-inflacionária. A valorização sustentada do real reduz o preço dos produtos importados e evita (na ausência do imposto de exportação) o encarecimento excessivo dos produtos brasileiros exportados. É extremamente perversa a repercussão da hipervalorização do real sobre a atividade econômica interna. Empresas que dominam fatias de mercado e que, antes, produziam internamente, passam a importar produtos do exterior. Há destruição de elos das cadeias produtivas, e de empregos. De vagões ferroviários até lápis e borracha escolar, são hoje milhares de produtos importados que o Brasil produzia e domina a tecnologia.
Há um silêncio sobre o s custos, a longo prazo, desse padrão de política anti-inflacionária. As reservas internacionais brasileiras crescem, porém o Banco Central (BC), gestor dessas reservas, as constitui emitindo Títulos de dívida do Tesouro. O povo brasileiro paga a taxa Selic por essa dívida e o BC recebe uma ínfima remuneração da reserva que aplica em papéis do Tesouro americano. Esse é um buraco sem fundo, que recolhe impostos e paga juros. Parcela significativa dos impostos e contribuições se alimentam do superávit primário e, sendo insuficientes, engendram novas emissões de títulos de dívida do Tesouro brasileiro.
Em tempo: são mantidas as indexações das principais tarifas de serviços públicos e, indiretamente, via sistema bancário, há uma proteção (pelo menos parcial) do caixa das empresas. Os bancos remuneram os depósitos à vista com parcela dos juros que recebem dos Títulos de dívida pública.
Simultaneamente a essa "política anti-inflacionária", que mutila o investimento público e orienta as empresas para especulações financeiras, as famílias são induzidas a se endividarem a longo prazo não para comprar a moradia, mas com eletrodomésticos, móveis, veículos, etc. Em uma economia pouco dinâmica, que admite a destruição de empregos e sacrifica o crescimento econômico em nome da estabilização, o endividamento familiar cria uma perigosa bolha cuja manifestação mais evidente é a inadimplência das famílias. Em junho o recorde na taxa de inadimplência reproduziu o cenário de nove anos atrás.
A crescente inadimplência familiar é, em curto prazo, o efeito combinado da alta da taxa de juros com a elevação do IOF. Em longo prazo, a estagnação e o medíocre crescimento continuarão a produzir inadimplência e assistiremos a consolidação de duas tendências inquietantes: pela primeira, nossa juventude sem esperança lança seu olhar para o resto do mundo e emigra; pela segunda, uns poucos grupos brasileiros bem sucedidos passarão a adquirir empresas em outros países. A defesa do nível de atividade da economia, mediante um modelo "Casas Bahia", não é sustentável a longo prazo. Após um longo período, em que a frota de veículos cresceu 9% ao ano e foi implantado o congestionamento como padrão urbano brasileiro, com elevação de acidentes rodoviários, no momento os pátios das montadoras estão lotados e serão concedidas férias coletivas. É difícil imaginar o Brasil exportando crescentemente veículos; é visível o aumento de carros importados do exterior.
É assustadora a ausência de discussão sobre salvaguardas e sobre a retomada de um padrão de desenvolvimento nacional que gere empregos e renda para os jovens.
Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do BNDES.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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