Apesar do cenário adverso, 'aglomerados subnormais' têm intensa mobilidade social, provavelmente mais que a média da sociedade
A frequência de incêndios em favelas de São Paulo gera compreensíveis preocupações e até suspeitas, não necessariamente fundamentadas. É preferível situar o tema, inicialmente, no contexto mais apropriado das condições fisicamente adversas e impróprias de localização dos aglomerados subnormais, como os denomina o IBGE. O tempo seco, sem dúvida, favorece esses desastres porque as habitações são construídas com materiais de fácil combustão, como madeira e papelão, são coladas uma às outras, têm gambiarras de fios expostos, botijões de gás, fogões acesos e fósforos ao alcance de crianças cujos pais, não raro, estão ausentes, no trabalho.
Os aglomerados subnormais têm localização bem determinada na geografia habitacional brasileira. Em todo o país, os 6.329 que foram identificados e recenseados em 2010 estão em apenas 323 dos 5.565 municípios. Neles vivem 6% da população. A maioria (88,6%) em 20 das regiões metropolitanas e 49,8% nas do Sudeste, e aí já, predominantemente em favelas. Um terço deles na Região Metropolitana de São Paulo e mais de um sexto na do Rio. Em São Paulo, 11% dos habitantes vivem nesses aglomerados, sendo mais de 2 milhões de pessoas. No entanto, em Belém do Pará, 62,5% da população neles vive, 26,7% em Salvador, 22,4% em Recife, 23,9% em São Luís, 13,3% no Rio, 13,2% em Teresina, 10,2% em Maceió. Portanto, um bom número das grandes cidades brasileiras já contém, em tamanho significativo, o que Lewis Munford classifica como áreas de deterioração social.
Quando se entra em casebres e até barracos de favelas, pode-se entender de imediato qual é o grande, embora não o único, fator da crescente favelização das cidades brasileiras. Muitas casas, em particular as de alvenaria crua, que não são poucas nos aglomerados subnormais, são até mais confortáveis do que as habitações de roça de onde procedem muitos de seus moradores. Quem ali mora é autor da própria moradia, capaz, sozinho ou com ajuda de amigos, de construir a casa. Muitos desses são operários da construção civil, que sabem o que estão fazendo. O que lhes faltou não foi casa ou meios e capacidade de construí-la: foi terreno.
O risco de incêndio não é o único que correm as favelas. Outras ocorrências trágicas, como as inundações, os escorregamentos ou os deslizamentos de terra têm marcado a agonia de seus moradores. Impossibilitados de pagar o preço da terra nos lugares apropriados, restam-lhes os terrenos perigosos e insalubres, até porque de mais fácil invasão, pois de maior risco.
Não obstante o cenário adverso, favela é lugar de intensa mobilidade social, provavelmente mais intensa do que na média da sociedade brasileira. Os barracos de madeira e cartão constituem, quase sempre e felizmente, apenas o primeiro degrau de uma lenta ascensão social, que culminará com o casebre de alvenaria em terra alheia e até mesmo a migração para a casa em terra própria. Barracos de favela são moradias de passagem, o que se nota em seu animado "mercado imobiliário". Isso não torna as favelas aceitáveis. É preciso compreender essa sociedade peculiar que surge e prolifera à margem da sociedade dominante às custas de engenhosas estratégias de sobrevivência.
A grave questão social dos aglomerados subnormais esconde problemas que essa sociedade não quer enfrentar. Neles vive a não insignificante população de mais de 11 milhões de pessoas. É neles que está uma parte da força de trabalho, particularmente relevante se considerarmos que sua maior concentração se encontra nas regiões economicamente mais desenvolvidas. É neles que habitam muitas das empregadas domésticas, dos trabalhadores braçais, sobretudo os da construção civil, muitos dos trabalhadores do chamado setor de serviços, como limpeza e jardinagem. Seus salários sabidamente baixos são complementados pelo barateamento das condições de vida, em particular as da habitação. Subsidiam, com sua pobreza, o bem-estar da classe média que do seu trabalho se beneficia e depende. O discurso moral e religioso sobre a pobreza até hoje não conseguiu tocar no ponto complicado da questão: a funcionalidade econômica da miséria numa sociedade como a nossa. É significativo que na campanha eleitoral destes dias o eleitorado se defronte com uma briga de comadres e uma troca de maledicências e não tenha ouvido ainda uma palavra corajosa e competente sobre o gravíssimo problema das favelas, dos cortiços e dos moradores de rua e sobre quanto grandes cidades como São Paulo deles dependem.
Se se fizesse a conta de quanto custam aos governos, e a todos nós, pelos enormes problemas que sofrem no socorro de que carecem nos incêndios, nas inundações, nos deslizamentos, nas questões de saúde agravadas pelas más condições de vida, nas políticas sociais compensatórias, provavelmente ficaria mais fácil encontrar a saída para esse problema social. Como se fez no fim da escravidão: foi só comparar o preço do escravo com o custo do trabalho livre para que a Lei Áurea fosse assinada.
FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO
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