O governo apresentou ao país cinco "pactos" como resposta à intensa onda de protestos com a qual a política brasileira tem convivido desde meados do mês de junho. Versam sobre responsabilidade fiscal, reforma política, mobilidade urbana, saúde e educação. Equívocos no assessoramento político presidencial pululam do episódio. Para começar, apenas o tema da mobilidade urbana surge como novidade no cenário de políticas em torno das quais o Estado brasileiro é instado a criar alternativas consensuais e consistentes. Todo o resto faz parte de um conjunto de pontos, em alguma medida, já pactuados pela sociedade. A lei de responsabilidade fiscal foi aprovada e tem sido a âncora institucional do consenso em torno da necessidade de se governar tendo o equilíbrio nas contas públicas como parâmetro básico de comportamento do agente público. O SUS, assim como os diferentes fundos de financiamento dos ensinos básico e médio, expressa o desejo coletivo de avançar no que tange o acesso de todos os brasileiros aos direitos fundamentais à saúde e à educação. Avançar mais nestes itens é uma questão de se governar bem. Não sendo boa a avaliação do governo em áreas consideradas vitais, reza o processo democrático, alternativas políticas são apresentadas e o eleitor opta por não reconduzir ao governo o partido ou coalizão de partidos responsável pela administração do país.
A reforma política, por seu turno, também é em boa medida objeto de um pacto. O pacto de não promovê-la de forma açodada. Sim, não mexer nas instituições, a não ser de modo prudencial e por tentativa e erro, tem sido a solução de equilíbrio dada a intensidade do conflito em torno da questão, além, sobretudo, da enorme incerteza proveniente de eventuais mudanças nas regras que regem nosso processo eleitoral. Vejam bem: tal equilíbrio não advém do receio de parlamentares de mudarem as regras pelas quais se elegeram e das quais, portanto, supostamente se beneficiaram. O raciocínio é tão simples e claro, quanto falso. As taxas de renovação parlamentar no Brasil são relativamente altas, donde decorre que nenhum político se sente seguro em sua cadeira de congressista. O problema de mudar é outro e mais profundo.
Em primeiro lugar, os parlamentares sabem que nenhuma reforma será capaz de preencher a expectativa existente em torno do tema. Não existe exemplo de reforma do sistema eleitoral que tenha reduzido taxas de corrupção no interior do sistema político. Assim, eleva-se o risco de no médio prazo, e no suposto da aprovação de uma reforma qualquer, se aprofundar o descrédito popular nas instituições democráticas. Em segundo lugar, e talvez mais importante no horizonte de cálculo dos políticos, qualquer mudança de sistema produzirá efeitos incertos sobre suas condições de sobrevivência eleitoral. Sabe-se que mudanças de regimes majoritários para regimes proporcionais tendem a aumentar o pluralismo de partidos e, inversamente, a adoção de mecanismos majoritários acabam por reduzir a competitividade entre as agremiações. Todavia, os parlamentares, tomados individualmente, principalmente os do chamado baixo clero, não conhecem ex ante se suas chances de vitória aumentam ou diminuem na transição de um sistema para outro dado que estas dependem de diversos outros fatores associados à mudança e que se encontram fora de seu controle imediato.
Não deve surpreender, portanto, a resistência encontrada pelo governo à ideia de submeter a plebiscito decisões que dizem respeito ao desenho do sistema eleitoral. É importante chamar a atenção para a falha no assessoramento político presidencial neste episódio em particular e não apenas pelo erro elementar de cálculo de timing e probabilidade de absorção pelo Congresso Nacional de ideia tão estapafúrdia. É também relevante notar que não poderia existir alvo mais equivocado para tratar de uma crise que se diz de representatividade.
Se algo na política brasileira existe de representativo, este algo consiste na combinação de eleições presidenciais diretas e método proporcional para alocação de cadeiras na Câmara dos Deputados. É exatamente esta combinação que tem permitido algum avanço na cidadania desde o retorno à democracia com a Constituinte de 1987. Por óbvio, aperfeiçoamentos podem ser obtidos na questão do financiamento de campanhas e em alguns pontos técnicos ligados à possibilidade de coligações e mecanismos de distribuição de sobras eleitorais. Todos estes itens já são objeto de debate e deliberação na Câmara e, no seu devido tempo, devem amadurecer e chegar ao plenário de maneira consensual. O resultado líquido, contudo, de se enviar ao Congresso e anunciar à nação sobre a convocação de uma consulta em torno das instituições representativas é corroborar a visão segundo a qual a crise que se manifesta nas ruas tem origem no sistema de representação, quando na verdade o que se vê encontra-se claramente relacionado à dimensão participativa da democracia.
Nada mais legítimo numa democracia do que a existência de protestos e manifestações de desagrado. O problema colocado no Brasil na atual conjuntura é o de sua intensidade, magnitude e reiteração, a ponto de se colocar sob risco valores democráticos importantes como o da tolerância, não violência e o das liberdades mútuas. Trata-se, portanto, de uma questão de se repensar os canais de interlocução entre setores, que por algum motivo não se sentem representados em suas preocupações básicas pela coalizão predominante no governo, e as entidades do Estado responsáveis pela elaboração e implementação de políticas públicas fundamentais. Mais criatividade e imaginação institucional no âmbito participativo e menos chavão institucionalista no âmbito representativo deve ser o norte da resposta política do governo à crise. Uma resposta cujo ponto de partida esteja assentado na defesa da solidez de nossas instituições representativas e democráticas.
Fabiano Santos é cientista político, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Fonte: Valor Econômico
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