- Valor Econômico
Além da má distribuição de renda quando tributa, o Estado não prioriza os pobres ao gastar os recursos arrecadados
Neste momento em que a má distribuição de renda no mundo e no Brasil tem suscitado propostas agressivas de elevação de impostos, é preciso uma discussão objetiva sobre o tema da desigualdade.
O primeiro passo é compreender o inevitável conflito entre prosperidade e equidade. Para se gerar prosperidade, entendida como uma abundante produção física, é preciso eficiência na atividade produtiva. Esta resulta dos incentivos econômicos proporcionados pela economia de mercado. Neste regime econômico, entretanto, os cidadãos mais aptos, tudo mais constante, levam vantagem, de modo que a prosperidade traz consigo a desigualdade. Decorre desse conflito estrutural que, para se conciliar prosperidade com equidade, é preciso sacrificar parcialmente cada um dos dois objetivos, no intuito de se assegurar um pouco de ambos.
Cabe ao Estado tributar os cidadãos que mais se beneficiam da economia de mercado, transferindo os recursos para os menos capacitados ou para aqueles que por algum motivo externo - como choques negativos, falta de oportunidade, obstáculos institucionais, etc. - ficaram para trás. A tributação, por reduzir incentivos ao trabalho e ao empreendedorismo, reduz a prosperidade, mas é o preço a pagar para se diminuir a desigualdade.
A transferência pode se dar de duas formas. A primeira por meio da entrega direta dos tributos cobrados dos mais ricos aos mais pobres, via programas assistenciais, como o Bolsa Família ou Loas. A segunda forma se dá através da despesa do Estado. Quando esta prioriza os serviços utilizados pela população desfavorecida, concede-se a esta algo que não será absorvido pelo rico. Muito se enfatiza a necessidade de se transferir renda dos ricos para os pobres, esquecendo-se de que a qualidade de vida dos desfavorecidos pode ser muito melhorada mediante melhoria no foco dos gastos públicos.
O Estado brasileiro funciona mal nas duas formas de atuação acima citadas. Os exemplos são muitos. Ao manter regimes tributários diferentes para contribuintes com o mesmo potencial contributivo, o Estado agrava a má distribuição de renda. Este é o caso das firmas de lucro presumido, que permitem a profissionais liberais e pequenos empresários - muitos membros da alta classe média alta ou até ricos - escaparem da elevada tributação que sobrecarrega os empregados celetistas.
Outro exemplo é a baixa tributação sobre a propriedade imobiliária. Com 350 milhões de hectares de pecuária e 70 milhões de hectares de agricultura, a arrecadação anual do Imposto Territorial Rural é de apenas R$ 1,2 bilhão. Isso significa uma receita anual de somente R$ 3 por hectare, incidente sobre o setor da economia que mais cresce. A arrecadação de IPTU é igualmente baixa, 1,5% do PIB, pois sendo um imposto claramente visível pelo contribuinte, as prefeituras preferem outras fontes, como o ISS, que atingem ricos e pobres indiscriminadamente.
Além de agravar a má distribuição de renda quando tributa, o Estado não prioriza os pobres ao gastar os recursos arrecadados. Quando paga aos servidores salários muito superiores aos recebidos pelos empregados do setor privado, bem como lhes dá aposentadorias em condições inexistentes para os demais trabalhadores, o Estado devolve boa parte da tributação para as classes média e alta. O mesmo ocorre quando não cobra mensalidade de universitários que poderiam pagar, ou quando concede isenções tributárias que atingem 4% do PIB e não beneficiam as populações carentes.
Os programas voltados à promoção da distribuição regional da renda com recursos oriundos dos fundos regionais - FDNE, FDCO e FDN -, que recebem 3% da arrecadação de IRPF e IRPJ, subsidiam empresas no intuito de gerar empregos em regiões carentes. Esses recursos teriam impacto muito maior na melhoria da qualidade de vida dos pobres dessas regiões se fossem diretamente destinados à saúde e educação populares. A velha Sudene foi recriada por Lula em 2007. A Zona Franca de Manaus foi prolongada até 2073.
O contraste entre a ineficiência desse tipo de programa e a eficiência de outros bem focados, como o Bolsa Família, é enorme, mas os lobbies organizados perpetuam - e até recriam, quando já extintos - os maus programas.
O investimento na infraestrutura de transporte de massa constitui um grande e inexplorado redutor potencial de desigualdades. Muitos trabalhadores de grandes centros urbanos moram em favelas precárias e dominadas por traficantes ou milicianos, embora tenham renda suficiente para financiar a compra de uma moradia modesta na periferia. Mas o elevado tempo perdido em transportes coletivos de péssima qualidade inviabiliza a opção pela moradia digna à distância. Perde-se mais uma oportunidade de melhorar o bem-estar de uma enorme fatia da população.
A boa notícia é que nos últimos anos observou-se alguns avanços. O fim da TJLP eliminou os gigantescos subsídios concedidos a grandes empresas pelo BNDES, que custavam anualmente 0,5% do PIB - mais do que o Bolsa Família. A inflação, o mais duro dos impostos incidentes sobre os pobres, foi debelada quando se aproximava de 11% ao ano, devendo permanecer baixa devido à iminente aprovação da independência do Banco Central. A aposentadoria por tempo de contribuição, que permitia à classe média se aposentar antes dos pobres, foi suprimida pela reforma da Previdência.
A inédita queda da taxa real de juros, possibilitada pela perspectiva de equilíbrio fiscal estrutural induzido pelo Teto de Gastos, reduziu em 2,5% do PIB o pagamento de juros reais sobre a dívida pública aos rentistas. A eliminação de isenções fiscais desfocadas, extorquidas no passado por pressão de lobbies, avançará na mesma linha.
Apesar dos avanços, a imensa desigualdade ainda existente leva vários grupos a defender uma maior tributação sobre poupança, investimento e ativos, em vez de focar no uso dos recursos. O que garante que, após uma elevação adicional da carga tributária, os recursos seriam realmente direcionados aos pobres, e não aos mesmos grupos de pressão? Diante da elevada carga tributária de cerca de 38% do PIB, o Brasil está muito longe da situação em que os recursos já arrecadados são plena e adequadamente direcionados à redução das imensas desigualdades. A maior tributação apenas inibiria ainda mais os investimentos, em detrimento da geração de empregos. As principais vítimas seriam justamente os pobres que se busca beneficiar.
*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento
Renato Fragelli Cardoso é professor da EPGE-FGV
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